À Mesa com Dona Amélia: Um Encontro que Mudou Tudo
— Desculpe, este lugar está ocupado? — perguntei, hesitante, olhando para a senhora de cabelos brancos sentada sozinha junto à janela do Café Central. O cheiro de café acabado de fazer misturava-se com o aroma da chuva que batia nos vidros. Ela levantou os olhos, surpreendida, mas sorriu com gentileza.
— Não, meu rapaz. Senta-te, faz-me companhia — respondeu ela, ajeitando o xaile sobre os ombros magros.
Sentei-me, sentindo o olhar curioso dos outros clientes. Em Vila Nova de Gaia, todos se conhecem e estranham novidades. Eu próprio não sabia bem porque me sentara ali; talvez fosse o cansaço dos dias iguais ou a solidão que me pesava desde que o meu pai partira para França à procura de trabalho.
— Chamo-me Amélia — disse ela, estendendo-me a mão trémula. — E tu?
— Sou o Tiago. — Apertei-lhe a mão, sentindo a pele fina e fria.
O silêncio caiu entre nós, apenas interrompido pelo tilintar das chávenas e o murmúrio da chuva. Olhei para o prato dela: uma sopa quase intocada e um pão seco.
— Não tem fome? — arrisquei.
Ela sorriu, mas os olhos brilharam com uma tristeza antiga.
— Já tive mais apetite noutras alturas… — murmurou. — Agora como mais por hábito do que por vontade.
Fiquei sem saber o que dizer. Lembrei-me das noites em que a minha mãe chorava baixinho na cozinha, preocupada com as contas e com as saudades do meu pai. A solidão tem muitos rostos, pensei.
— Sabe, Dona Amélia, também venho cá sozinho muitas vezes. Às vezes parece que o mundo anda depressa demais para nós — confessei.
Ela olhou-me com atenção, como se visse através de mim.
— O mundo não anda depressa demais, Tiago. Somos nós que ficamos para trás quando deixamos de ter quem nos espere em casa.
As palavras dela bateram fundo. Lembrei-me do meu irmão mais novo, sempre colado ao telemóvel, e da minha avó, que já não reconhecia ninguém. Senti um nó na garganta.
— Tem família? — perguntei baixinho.
Ela suspirou.
— Tive um filho. O António. Mas já não fala comigo há anos. Casou-se com uma mulher que nunca gostou de mim. Dizem que sou amarga… Talvez seja verdade.
O olhar dela perdeu-se na janela, onde as gotas de chuva deslizavam como lágrimas.
— Sabe, Dona Amélia… — comecei, mas ela interrompeu-me.
— Não me chames dona. Chama-me só Amélia. Já não sou dona de nada há muito tempo.
Sorri, sem saber bem como continuar. Pedi dois cafés e um bolo de arroz para partilharmos. Ela agradeceu com um aceno tímido.
— O António era tudo para mim — continuou ela, a voz embargada. — Depois que o pai dele morreu no acidente da fábrica, fiquei sozinha para criar um rapaz teimoso e sonhador. Fiz tudo o que pude… mas nunca chega, pois não?
Balancei a cabeça, compreendendo mais do que queria admitir.
— Às vezes parece que nunca é suficiente — disse eu. — O meu pai também foi embora para trabalhar lá fora. A minha mãe diz que é por nós, mas eu só vejo a casa cada vez mais vazia.
Ela pousou a mão sobre a minha.
— A ausência pesa mais do que qualquer dívida ou falta de dinheiro. Mas sabes? Ainda dói mais quando quem amamos escolhe afastar-se.
Ficámos assim por uns instantes, partilhando silêncios e dores antigas. O café trouxe-nos os bolos e serviu-nos com um sorriso cúmplice. Talvez já tivesse visto aquela cena antes: dois estranhos a encontrarem consolo um no outro.
— E tu? Tens sonhos? — perguntou Amélia de repente.
Fui apanhado de surpresa.
— Queria ser músico… mas agora trabalho no supermercado para ajudar em casa. A guitarra está encostada no armário há meses.
Ela sorriu com ternura.
— Nunca é tarde para recomeçar, Tiago. Eu própria já pensei em aprender piano… mas agora já não tenho forças nem paciência.
Rimo-nos juntos pela primeira vez naquela noite.
O tempo passou sem darmos conta. Quando me levantei para ir embora, hesitei.
— Posso voltar amanhã? — perguntei.
Os olhos dela brilharam de esperança.
— Se não voltares, vou pensar que me deixaste sozinha outra vez — respondeu ela, fingindo uma bravura que não enganava ninguém.
Nos dias seguintes, voltei sempre ao Café Central à mesma hora. Partilhávamos histórias: ela falava do Douro nos anos 60, das vindimas e das festas populares; eu contava-lhe dos meus medos e das pequenas alegrias do dia-a-dia. Aos poucos, fui percebendo que aquela mulher guardava segredos maiores do que eu imaginava.
Uma tarde, cheguei e encontrei-a a chorar baixinho.
— O António ligou hoje — disse ela entre soluços. — Vai casar outra vez… e não me convidou para o casamento.
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão.
— Ele vai arrepender-se um dia — disse eu, sem saber se era verdade ou apenas uma esperança vã.
Ela olhou-me com gratidão e tristeza misturadas.
— Não quero morrer sem lhe dizer que o perdoo… mas também não quero implorar pelo amor dele.
Fiquei sem palavras. Pensei na minha própria família: nas discussões com o meu pai antes dele partir; nas vezes em que quis pedir desculpa mas deixei passar por orgulho ou medo.
Naquela noite, escrevi uma música para Amélia. Toquei-a no café enquanto ela sorria entre lágrimas. Os clientes pararam para ouvir; alguns choraram também. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me útil, parte de algo maior do que eu próprio.
A notícia espalhou-se pela vila: “O rapaz do supermercado faz companhia à velha Amélia”. Alguns riam-se; outros diziam que era bonito ver alguém preocupar-se com os mais velhos. A minha mãe ficou orgulhosa; o meu irmão gozou comigo no início, mas depois começou a vir também ouvir as histórias dela.
Certo dia, Amélia não apareceu ao café. Esperei horas, inquieto. Fui até à casa dela — uma moradia antiga na Rua das Oliveiras — e bati à porta insistentemente. Ninguém respondeu. Falei com a vizinha do lado, Dona Rosa:
— A Amélia foi levada ontem para o hospital… caiu nas escadas — disse ela baixinho.
Corri até ao hospital de Gaia com o coração apertado. Encontrei-a pálida na cama, mas sorriu ao ver-me entrar.
— Sabia que vinhas — murmurou ela. — Nunca me falhaste…
Sentei-me ao lado dela e contei-lhe as novidades do café: quem tinha ido, quem tinha faltado; as piadas do senhor Manuel; as histórias da Dona Rosa sobre os gatos vadios. Ela riu-se baixinho e pediu-me para tocar-lhe a música outra vez no telemóvel.
Nos dias seguintes visitei-a sempre que pude. Um dia encontrei o António à porta do quarto dela: um homem alto, de olhar cansado e mãos nervosas.
— És tu o Tiago? — perguntou ele desconfiado.
Assenti.
— Obrigado por cuidares da minha mãe… Eu devia ter feito mais — disse ele com voz embargada.
Olhei-o nos olhos e vi ali o mesmo medo de falhar que tantas vezes senti em mim próprio.
— Ainda vai a tempo — respondi simplesmente.
Na última noite antes de Amélia partir deste mundo, sentámo-nos os três juntos: eu toquei guitarra baixinho; António segurou-lhe a mão; ela sorriu em paz pela primeira vez em muitos anos.
No funeral dela estavam todos: vizinhos, clientes do café, até pessoas que nunca lhe tinham falado mas conheciam as histórias através de mim ou das redes sociais onde partilhei aquela amizade improvável. O António chorou como uma criança; eu abracei-o sem vergonha dos meus próprios soluços.
Hoje passo pelo Café Central todos os dias e olho para aquela mesa junto à janela. Às vezes sento-me ali sozinho e penso em tudo o que aprendi com Amélia: sobre perdão, solidão e coragem para recomeçar mesmo quando tudo parece perdido.
Pergunto-me: quantas Amélias passam despercebidas nas nossas vidas? Quantos encontros adiamos por medo ou vergonha? E se fosse connosco? Será que temos coragem de sentar à mesa da solidão alheia e transformar duas vidas numa só história?