“A Herança Que Nunca Foi Minha”: O Dia em Que Descobri a Verdade Sobre a Minha Família

— Não é justo, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto ela desviava o olhar para a janela da sala. O sol de Lisboa entrava tímido, mas o frio entre nós era cortante. — Sempre foi assim, não é? O Diogo faz tudo mal e tu perdoas. Eu faço tudo certo e nunca chega.

Ela não respondeu. Ficou ali, sentada no sofá azul que o meu pai tanto gostava, com as mãos entrelaçadas no colo. Eu sabia que estava doente, sabia que o tempo dela estava a acabar, mas naquele momento só sentia raiva. Raiva por nunca ter sido suficiente.

O meu irmão Diogo chegou tarde nesse dia. Entrou em casa como se nada fosse, com aquele sorriso de quem nunca carrega peso nenhum. — Então, mana? — disse ele, pousando as chaves na mesa da entrada. — Ainda estás chateada?

Não respondi. Fui para o meu quarto e fechei a porta. Lembro-me de ter chorado baixinho, para ninguém ouvir. Cresci a ouvir que devia ser forte, que não devia mostrar fraqueza. Mas naquele dia, senti-me pequena, invisível.

O tempo passou depressa demais depois disso. O meu pai morreu três anos depois daquele dia, vítima de um enfarte fulminante. A minha mãe ficou ainda mais distante. Eu tentava cuidar dela, mas ela parecia preferir a companhia do Diogo. Ele vinha pouco a casa, mas quando vinha era festa: risos, histórias, abraços. Eu era a filha responsável, aquela que tratava das contas, das consultas médicas, das compras do supermercado.

Quando a minha mãe adoeceu de vez, fui eu quem ficou ao lado dela no hospital. O Diogo aparecia de vez em quando, sempre com desculpas: o trabalho, a namorada nova, os amigos. No último dia dela, segurou-me na mão e disse: — Não deixes o teu irmão sozinho. Ele precisa de ti.

Naquele momento, prometi que faria tudo para manter a família unida. Mas não sabia o que me esperava.

O funeral foi simples. Pouca gente, muitos silêncios. Depois do enterro, fomos para casa dos meus pais — agora só minha mãe — para organizar as coisas. O Diogo parecia impaciente.

— Olha lá, Ana — começou ele, enquanto mexia nos papéis da secretária do meu pai — já viste o testamento?

— Ainda não — respondi, cansada. — Achas mesmo que é altura para isso?

Ele encolheu os ombros. — Só quero saber como ficam as casas.

As casas. Os meus pais tinham comprado uma para cada um de nós: eu vivia em Benfica, ele em Almada. Sempre achei que era justo.

Dois dias depois, recebemos uma chamada do advogado da família. Fomos juntos ao escritório dele na Baixa. O Diogo estava nervoso; eu só queria que tudo acabasse depressa.

O advogado abriu uma pasta preta e tirou de lá uns papéis amarelados.

— A vossa mãe deixou um testamento recente — disse ele, olhando-nos por cima dos óculos.

Senti um aperto no peito.

— Segundo o documento — continuou ele — a casa de Benfica passa para o Diogo. A casa de Almada também passa para o Diogo. Todos os bens móveis e contas bancárias ficam igualmente para o Diogo.

Fiquei sem ar. Olhei para o Diogo à espera de uma reação dele, mas ele só sorriu e baixou os olhos.

— Deve haver algum engano — disse eu, com a voz trémula. — Sempre nos disseram que cada um ficaria com a sua casa.

O advogado abanou a cabeça.

— A vossa mãe alterou o testamento há seis meses. Está tudo legalizado.

Saí dali sem saber como andar. O chão parecia fugir-me dos pés. O Diogo tentou falar comigo no elevador:

— Ana…

— Não me fales — cortei eu, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pela cara.

Durante semanas não consegui dormir. Como é que a minha mãe me fez isto? Como é que deixou tudo ao Diogo? Eu fui quem esteve sempre lá! Fui eu quem cuidou dela quando estava doente! Fui eu quem ficou sozinha com todas as responsabilidades!

Os dias passaram arrastados. O Diogo ligava-me todos os dias, mas eu não atendia. Um dia apareceu à porta da minha casa.

— Ana, precisamos de falar.

Abri a porta só porque estava cansada de fugir.

— O que queres?

Ele entrou sem pedir licença e sentou-se na sala.

— Eu não sabia do testamento até ao dia da leitura — começou ele. — Juro que não pedi nada à mãe.

Olhei-o nos olhos e vi sinceridade ali. Mas isso não apagava a dor.

— Então porque é que ela fez isto?

Ele encolheu os ombros.

— Não sei… Talvez achasse que eu precisava mais… Ou talvez tenha ficado magoada contigo por alguma coisa…

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a rever todas as conversas com a minha mãe nos últimos meses de vida dela: será que disse alguma coisa errada? Será que ela achava mesmo que eu não precisava dela? Ou será que sempre fui invisível aos olhos dela?

As contas começaram a apertar. O Diogo disse que não me ia pôr fora da casa imediatamente, mas precisava de vender ambas para pagar dívidas antigas da mãe e impostos da herança.

Procurei trabalho extra para conseguir pagar uma renda quando tivesse de sair dali. Os amigos afastaram-se; ninguém queria ouvir falar de heranças e discussões familiares.

Uma noite recebi uma carta do Diogo:

“Mana,
Sei que estás magoada comigo e tens razão para isso. Não quero ficar com tudo sozinho. Quero dividir contigo o dinheiro das casas quando forem vendidas. Não é justo o que aconteceu e não quero perder-te como irmã.”

Chorei ao ler aquilo. Pela primeira vez em meses senti um pouco de alívio… mas também uma tristeza profunda por saber que nunca mais nada seria igual entre nós.

Hoje vivo num pequeno apartamento alugado em Odivelas. Trabalho mais horas do que gostaria e vejo o Diogo poucas vezes por mês. Às vezes penso em ligar-lhe e convidá-lo para jantar, mas depois lembro-me de tudo o que aconteceu e fico parada com o telefone na mão.

Pergunto-me muitas vezes: será que alguma vez vou conseguir perdoar a minha mãe? Será que alguma vez vou conseguir voltar a confiar no meu irmão? Ou será este o preço de amar demais uma família que nunca soube amar-me de volta?

E vocês? Já passaram por algo assim? Como se volta a confiar depois de uma traição destas?