A força da fé: A luta de Beatriz com o abandono e o perdão

— Não consigo mais, Beatriz. Preciso ir embora. — As palavras do Rui ecoaram na cozinha fria do nosso apartamento em Lisboa, enquanto eu segurava a barriga enorme, sentindo a minha filha a mexer-se dentro de mim. O relógio marcava quase meia-noite e o cheiro do chá de camomila misturava-se ao perfume dele, que eu sabia que ia desaparecer dali a minutos.

Fiquei ali, parada, sem conseguir responder. O Rui olhou-me nos olhos, mas já não era o mesmo homem por quem me apaixonei na faculdade. Havia uma distância, uma frieza que me cortava mais do que qualquer faca. — Vais deixar-me agora? — perguntei, a voz embargada. Ele desviou o olhar e pegou na mala que já estava pronta junto à porta. — Desculpa, Beatriz. Não sei ser pai. Não sei ser marido. — E saiu.

Naquela noite, chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me vazia, traída, como se tudo o que tínhamos construído tivesse sido uma mentira. A minha mãe, Dona Lurdes, veio no dia seguinte. Encontrou-me sentada no chão da sala, rodeada de fraldas e roupinhas de bebé. — Filha, tens de ser forte. Por ti e pela tua menina — disse ela, abraçando-me com uma força que só as mães têm.

Os meses seguintes foram um borrão de noites mal dormidas, consultas no hospital de Santa Maria e telefonemas não atendidos do Rui. A minha filha nasceu numa manhã chuvosa de março. Chamei-a Leonor, nome da minha avó, mulher de fibra que criou cinco filhos sozinha no Alentejo depois de ficar viúva cedo.

Os primeiros anos foram duros. Trabalhava como professora primária numa escola pública em Benfica e deixava a Leonor com a minha mãe. O salário mal chegava para as contas e havia dias em que só queria desaparecer. Mas todas as noites, antes de dormir, rezava. Pedia a Deus força para não odiar o Rui, para não me perder na amargura.

Três anos passaram-se assim. A Leonor crescia linda e cheia de perguntas: — Mãe, porque é que o pai não vem cá? — Eu inventava histórias: — O pai está a trabalhar longe, meu amor. Mas ele gosta muito de ti.

Até que numa tarde de domingo, enquanto dobrava roupa no varal da varanda, ouvi a campainha tocar. O coração disparou. Abri a porta e lá estava ele: Rui. Mais magro, cabelo despenteado, olhos vermelhos como se não dormisse há dias.

— Posso entrar? — perguntou baixinho.

Sentei-me no sofá com ele à frente. A Leonor estava na casa da minha mãe. O silêncio era pesado.

— Beatriz… Eu errei muito contigo. Fugi porque tive medo. Medo de ser pai, medo de falhar… Mas nunca deixei de pensar em vocês.

Olhei para ele sem saber o que dizer. Parte de mim queria gritar, bater-lhe, perguntar-lhe onde esteve quando precisei dele. Outra parte só queria paz.

— Preciso do teu perdão — disse ele, com lágrimas nos olhos.

Fiquei ali calada durante minutos que pareceram horas. Lembrei-me das noites sozinha com Leonor doente, das vezes em que tive de pedir dinheiro emprestado à minha mãe para pagar a renda. Lembrei-me também das orações em que pedia para conseguir perdoar.

— Não é assim tão simples — respondi finalmente. — Não podes aparecer depois de três anos e esperar que tudo volte ao normal.

Ele baixou a cabeça. — Eu sei… Só queria tentar ser melhor agora.

As semanas seguintes foram um turbilhão de emoções. O Rui começou a visitar Leonor aos poucos. Ela olhava para ele com curiosidade e alguma desconfiança. — És mesmo o meu pai? — perguntou-lhe um dia na praça do bairro.

Ele chorou à frente dela e prometeu nunca mais desaparecer.

A minha mãe foi contra desde o início. — Não confies nele outra vez! — dizia-me ao telefone. — Quem abandona uma vez, abandona sempre.

Mas eu sentia dentro de mim uma vontade enorme de perdoar. Não por ele, mas por mim e pela Leonor. Não queria viver presa ao passado nem ensinar à minha filha a guardar rancor.

Comecei a ir à igreja todos os domingos com Leonor pela mão. O padre António falava sempre sobre o poder do perdão e da fé nas horas mais difíceis.

Uma noite, depois de rezar muito, decidi falar com o Rui abertamente:

— Preciso saber se mudaste mesmo ou se isto é só remorso.

Ele contou-me tudo: tinha estado desempregado, perdido num mundo de dívidas e vergonha. Só agora conseguira reerguer-se com ajuda do irmão mais velho.

— Quero fazer parte da vida da Leonor — disse ele. — Mesmo que tu nunca me perdoes completamente.

Aceitei dar-lhe essa oportunidade, mas impus limites claros: nada de promessas vazias nem mentiras.

Aos poucos, fomos reconstruindo uma relação baseada no respeito e na verdade. Não voltámos a ser casal; isso já não fazia sentido para mim. Mas aprendi a ver o Rui como pai da minha filha e não apenas como o homem que me magoou.

Houve dias em que duvidei da minha decisão. Quando via outras famílias felizes no parque ou quando Leonor perguntava porque é que os pais dos amigos viviam juntos e nós não.

Mas também houve momentos bonitos: o primeiro aniversário em que cantámos os parabéns juntos à Leonor; as tardes em que ela desenhava retratos nossos com lápis de cor; as conversas honestas sobre o passado e o futuro.

A vida nunca voltou a ser igual ao que era antes do abandono do Rui. Mas eu também já não era a mesma mulher ingénua e dependente dele.

Hoje olho para trás com orgulho do caminho que percorri. Sei que perdoar não é esquecer nem justificar o mal que nos fazem; é libertar-nos do peso da mágoa para podermos viver em paz.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao passado por medo ou vergonha? Quantas conseguem encontrar força na fé para recomeçar?

E vocês? Já tiveram de perdoar alguém que vos magoou profundamente? Como encontraram forças para seguir em frente?