A Dívida da Minha Mãe Tornou-se o Meu Fardo: Um Legado Indesejado
— Não me podes fazer isto, Mariana! — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro a café requentado e o som abafado da chuva contra as janelas. — Sou tua mãe! Tens obrigação de me ajudar!
A minha garganta apertava-se cada vez que ouvia aquelas palavras. Obrigações. Deveres. Palavras que, na boca da minha mãe, soavam a correntes. Olhei para ela, sentada à mesa, os olhos pintados de rímel borrado e o cabelo loiro já com raízes escuras. Teresa sempre foi bonita, mesmo agora, aos 56 anos, mas havia algo de cansado nela, uma sombra que nunca me deixava esquecer tudo o que tínhamos perdido.
— Mãe, eu não posso pagar as tuas dívidas — tentei manter a voz firme, mas sentia as lágrimas a ameaçar-me. — Mal consigo pagar a renda do meu quarto em Lisboa. O que queres que faça?
Ela bateu com a mão na mesa, fazendo saltar uma chávena. — Não me interessa! Foste tu que escolheste ir estudar para Lisboa! Se tivesses ficado aqui, ao menos podias ajudar-me mais! — O tom dela era acusador, como se eu tivesse cometido um crime ao tentar fugir à vida que ela sempre levou.
Desde pequena que via a minha mãe viver à custa dos outros. Primeiro foi o meu pai, António, um homem calado e trabalhador que morreu cedo demais, esmagado por dívidas e pelo cansaço de tentar sustentar duas pessoas. Depois vieram os “amigos” — homens mais velhos, sempre prontos a pagar um jantar ou uma renda atrasada em troca de companhia e promessas vazias. Teresa nunca trabalhou um dia na vida. Sempre disse que o trabalho era para quem não sabia aproveitar as oportunidades.
Mas as oportunidades foram-se esgotando. Os amigos desapareceram, um a um. Uns morreram, outros cansaram-se das exigências constantes. E eu fiquei sozinha com ela e com as contas por pagar.
— Mariana, por favor… — Agora a voz dela era mais baixa, quase um sussurro. — Eles vão tirar-me a casa se não pagares…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Quantas vezes já tinha ouvido aquela ameaça? Quantas vezes já tinha sacrificado os meus sonhos para tapar buracos que não eram meus? Lembrei-me das noites em que ficava acordada, a fazer contas à vida, a pensar se valia a pena continuar a estudar ou se devia desistir e voltar para casa.
— Não posso, mãe — repeti, desta vez mais fria. — Não posso continuar a viver assim.
Ela levantou-se de rompante e saiu da cozinha, batendo com a porta do quarto. Fiquei ali sentada, sozinha, a olhar para as paredes descascadas e para as fotografias antigas na prateleira. Numa delas estávamos as duas: eu com seis anos, ela ainda jovem e sorridente, num verão qualquer na praia da Nazaré. Nessa altura ainda acreditava que tudo era possível.
Os dias seguintes foram um inferno. Telefonemas de bancos e agiotas começaram a chegar à casa da minha mãe. Ela ligava-me todos os dias, ora a chorar, ora a gritar comigo. Os vizinhos começaram a olhar de lado quando eu passava na rua.
Uma tarde, quando voltei a casa para buscar alguns livros antigos, encontrei-a sentada no sofá, rodeada de papéis espalhados pelo chão.
— Mariana… — disse ela com voz rouca. — Preciso mesmo da tua ajuda. Não tens ninguém em Lisboa que te possa emprestar dinheiro? Um namorado? Uma amiga?
Senti-me humilhada. A minha mãe não compreendia o esforço que era sobreviver numa cidade cara como Lisboa com um salário de estagiária e rendas absurdas. Não compreendia o que era abdicar de saídas, de viagens, de tudo o que os outros jovens tinham como garantido.
— Não tenho ninguém — respondi secamente. — E mesmo que tivesse… não ia pedir dinheiro para pagar as tuas dívidas.
Ela olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— És igual ao teu pai… sempre tão fria…
Essas palavras doeram mais do que qualquer dívida. O meu pai tinha morrido sozinho num hospital público porque ela não quis vender uma jóia para pagar os tratamentos. Sempre disse que ele era fraco, que não sabia lutar pela vida.
Naquela noite voltei para Lisboa com o coração despedaçado. Passei semanas sem falar com ela. Mas os problemas não desapareceram. Um dia recebi uma carta do banco: o nome dela estava ligado ao meu em algumas contas antigas. Descobri que ela tinha pedido empréstimos usando documentos meus quando eu ainda era menor.
O chão fugiu-me dos pés.
Liguei-lhe imediatamente:
— Mãe! Como é que pudeste fazer isto? Usaste o meu nome sem me dizer nada!
Do outro lado ouvi apenas silêncio.
— Mariana… eu só queria proteger-nos… achei que ia conseguir pagar tudo antes de descobrires…
— Proteger-nos? Agora sou eu que tenho de pagar por erros teus!
Desliguei o telefone sem esperar resposta. Passei noites sem dormir, a tentar perceber como sair daquele buraco. Falei com advogados, tentei renegociar dívidas, mas tudo parecia impossível.
No trabalho comecei a falhar prazos. A minha chefe, Dona Lurdes, chamou-me ao gabinete:
— Mariana, estás bem? Tens andado distraída…
Quis contar-lhe tudo mas calei-me. Quem ia compreender aquele peso? Quem ia perceber como é viver com uma mãe assim?
Os meses passaram e fui-me afastando cada vez mais dela. No Natal recusei ir a casa. Passei a noite sozinha no meu quarto frio em Lisboa, ouvindo os vizinhos rirem-se no andar de cima.
No início do ano seguinte recebi uma chamada do hospital: a minha mãe tinha sido internada depois de desmaiar em casa. Fui ter com ela sem saber o que sentir.
Quando cheguei ao quarto do hospital vi-a encolhida na cama, mais pequena do que nunca.
— Mariana… desculpa… — murmurou ela quando me viu.
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe na mão. Pela primeira vez vi medo nos olhos dela.
— Tenho medo de morrer sozinha — confessou.
Fiquei ali calada muito tempo. Pensei em tudo o que tinha perdido por causa dela: amigos, oportunidades, paz de espírito. Mas também pensei em tudo o que tinha aprendido: a lutar por mim própria, a não depender dos outros.
Quando saiu do hospital ajudei-a a encontrar um pequeno quarto arrendado numa vila próxima. Não consegui perdoar tudo mas consegui libertar-me do peso da culpa.
Hoje continuo a pagar algumas dívidas antigas mas já não carrego o fardo sozinha. Aprendi a dizer não. Aprendi que amor não é sinónimo de sacrifício cego.
Às vezes pergunto-me: quantos filhos vivem presos aos erros dos pais? Até onde vai o nosso dever familiar? Será possível amar sem nos perdermos completamente?