A Dívida da Minha Mãe Tornou-se o Meu Fardo: Herança de Dor e Escolhas
— Não podes simplesmente virar-me as costas, Inês! — a voz da minha mãe ecoava pela casa, carregada de desespero e raiva. Eu estava de pé na cozinha, as mãos trémulas a segurar uma chávena de chá frio, enquanto ela me lançava aquele olhar que sempre me fazia sentir pequena. — Sou tua mãe! Tens obrigação de me ajudar!
O cheiro do café queimado misturava-se ao perfume forte da minha mãe, Teresa, que sempre usou para mascarar o cheiro da ansiedade. Cresci a vê-la desfilar pela vila como se fosse uma rainha sem coroa, sempre rodeada de amigas ricas, sempre com um sorriso pronto e uma história engraçada para contar. Mas por trás das portas fechadas, a verdade era outra: Teresa nunca trabalhou um dia na vida. Vivia de favores, de prendas, de pequenos empréstimos que nunca pagava. E eu, filha única, aprendi cedo a não fazer perguntas.
Quando o meu pai morreu — eu tinha apenas oito anos —, a casa ficou mais silenciosa e o dinheiro começou a faltar. Mas Teresa não mudou. Continuou a sair todas as noites, a vestir-se com roupas caras oferecidas por amigas como a Dona Lurdes ou a Senhora Amélia. Eu ficava sozinha, a fazer os trabalhos de casa à luz fraca da sala, ouvindo o riso dela ao telefone.
— Inês, querida, vai buscar-me mais um copo de vinho — pedia-me, sem nunca reparar nas minhas notas da escola ou nas minhas lágrimas quando as contas não batiam certo.
Os anos passaram e fui crescendo com uma mistura de vergonha e raiva. Quando terminei o secundário, consegui uma bolsa para estudar enfermagem no Porto. Lembro-me do dia em que fiz as malas:
— Vais deixar-me aqui sozinha? — perguntou ela, com aquela voz magoada que usava sempre que queria alguma coisa.
— Preciso de viver a minha vida, mãe. Preciso de trabalhar, de ser alguém.
Ela não respondeu. Apenas virou costas e foi para o quarto.
No Porto, pela primeira vez senti-me livre. Trabalhava nos turnos da noite no hospital e estudava durante o dia. Fiz amigos que não conheciam Teresa nem as suas histórias. Mas a liberdade durou pouco.
Começaram a chegar cartas em meu nome. Cartas do banco, da segurança social, até de agiotas locais. Todas diziam o mesmo: dívidas acumuladas em nome de Teresa, mas com o meu número fiscal. Liguei-lhe furiosa:
— O que é isto? Como é que conseguiste fazer empréstimos em meu nome?
— Oh filha, era só para pagar umas contas pequenas. Depois pagava tudo! Não sejas ingrata!
A raiva subiu-me à garganta como um grito preso há anos.
— Não tens direito! Eu não sou responsável pelas tuas escolhas!
— És minha filha! Tens obrigação!
A palavra obrigação martelava-me na cabeça. Era sempre assim: Teresa fazia asneiras e eu limpava os cacos. Mas agora era diferente. Agora era o meu futuro em risco.
Tentei falar com os bancos, explicar que não tinha autorizado nada. Mas os papéis estavam assinados — falsificações toscas mas suficientes para me prenderem numa teia de dívidas. Os meus colegas começaram a notar o meu cansaço, as olheiras profundas, o sorriso forçado.
— Está tudo bem contigo? — perguntou-me a Ana um dia no refeitório.
— A minha mãe… — comecei, mas engoli as palavras. Como explicar aquela vergonha?
No Natal desse ano voltei à vila. A casa estava igual: desarrumada, fria, cheia de fotografias antigas e contas por pagar espalhadas pela mesa da sala.
— Trouxeste dinheiro? — foi a primeira coisa que Teresa perguntou.
— Não tenho mais nada para te dar.
Ela chorou. Chorou como nunca a tinha visto chorar antes. Disse que estava sozinha, que ninguém lhe ligava, que eu era ingrata como o meu pai dizia que seria.
— O teu pai morreu por tua causa! — gritou-me num acesso de fúria.
Senti o chão fugir-me dos pés. Saí porta fora sem olhar para trás.
Durante meses tentei reconstruir-me. Procurei ajuda jurídica, falei com assistentes sociais, tentei negociar as dívidas. Mas o nome estava sujo e as portas fechavam-se uma a uma. No hospital começaram a cortar horas extra; precisei de arranjar um segundo emprego num lar de idosos.
As noites eram longas e solitárias. Às vezes sonhava com Teresa jovem, bonita e feliz, antes das dívidas e das mentiras. Outras vezes sonhava que lhe gritava tudo o que nunca tive coragem de dizer.
Um dia recebi uma chamada do hospital da vila:
— É a filha da Teresa? A sua mãe está internada… parece que teve um AVC.
O coração bateu-me descompassado. Voltei à vila sem saber se sentia raiva ou pena.
Teresa estava pálida na cama do hospital, os olhos perdidos no teto.
— Inês… — murmurou — desculpa…
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão fria. Pela primeira vez vi-a como realmente era: frágil, assustada, humana.
Durante semanas cuidei dela como cuidava dos meus doentes: com profissionalismo e distância. Os vizinhos vinham visitar-nos e diziam:
— A tua mãe sempre foi boa pessoa… só teve azar na vida.
Eu sorria sem responder.
Quando Teresa morreu, fiquei sozinha na casa vazia. As dívidas continuavam lá — cartas empilhadas na mesa, ameaças veladas dos credores locais.
Pensei em fugir. Pensei em desistir de tudo e recomeçar noutro país. Mas depois lembrei-me das palavras do meu pai: “Nunca deixes que os erros dos outros definam quem tu és”.
Vendi tudo o que pude: móveis antigos, joias falsas, até os vestidos caros oferecidos pelas amigas da minha mãe. Paguei parte das dívidas e negociei o resto com lágrimas e promessas.
Hoje vivo num pequeno apartamento no Porto. Trabalho muito — talvez demais — mas durmo tranquila. Às vezes olho para uma fotografia antiga da Teresa e pergunto-me se poderia ter feito diferente.
Será que somos mesmo obrigados a carregar os pecados dos nossos pais? Ou podemos escolher ser livres deles? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.