A Dívida da Minha Mãe, Minha Condenação: Uma História Sobre o Legado que Não Escolhi

— Mariana, por favor, atende! — gritava a minha mãe do outro lado da porta, a voz embargada pelo desespero. Eu estava sentada no chão frio do corredor, com o telemóvel na mão, a tentar respirar fundo. Ouvia os passos dela, apressados, quase tropeçando nos tapetes gastos do nosso velho apartamento em Almada.

— Não posso, mãe. Não posso continuar a mentir por ti — respondi, sem conseguir conter as lágrimas. O eco da minha voz parecia devolver-me o peso de todos os anos em que tentei ser filha e mãe ao mesmo tempo.

A Teresa sempre foi uma mulher de sonhos grandes e pés pequenos. Quando eu era miúda, ela prometia mundos e fundos: “Um dia vamos viver numa casa com jardim, Mariana. Vais ver.” Mas os anos passaram e o jardim nunca apareceu. Em vez disso, vieram cartas do banco, telefonemas de números desconhecidos e visitas inesperadas de cobradores que batiam à porta como se fossem velhos amigos.

Lembro-me da primeira vez que percebi que havia algo errado. Tinha dez anos e ouvi a minha mãe ao telefone:

— Sim, Sr. António, eu sei… Mas se me der só mais uma semana…

Ela desligou e sorriu para mim, mas os olhos estavam vermelhos. Na altura não percebi o que significava dever dinheiro. Só mais tarde é que comecei a juntar as peças: as contas atrasadas, os cortes de luz, os jantares de arroz com ovo quando o frigorífico estava vazio.

O meu pai saiu de casa quando eu tinha sete anos. Nunca mais quis saber de nós. A minha mãe dizia que ele era fraco, que não aguentou a pressão. Eu cresci a ouvir que éramos só nós duas contra o mundo. E durante muito tempo, isso bastou-me.

Mas à medida que fui crescendo, fui percebendo que o mundo não era só injusto connosco — às vezes era ela própria quem criava as tempestades onde depois nos afogávamos.

Quando fiz dezoito anos, comecei a trabalhar numa pastelaria para ajudar em casa. O dinheiro mal chegava para as despesas básicas. A Teresa continuava a pedir empréstimos atrás de empréstimos. “É só até arranjar um trabalho melhor”, dizia ela. Mas o trabalho melhor nunca chegou.

Aos vinte e três anos, já tinha deixado de estudar para poder pagar as contas da casa. Os meus amigos começaram a afastar-se — ninguém queria vir cá a casa, ninguém queria ouvir falar de problemas. Só a minha avó materna ainda vinha visitar-nos de vez em quando, mas até ela se cansou das promessas não cumpridas da minha mãe.

— Mariana, tu não tens culpa disto — dizia-me ela um dia, enquanto me apertava as mãos com força. — Mas tens de pensar em ti.

Eu queria pensar em mim. Queria sair dali, arranjar um emprego melhor, talvez voltar a estudar à noite. Mas sempre que tentava dar um passo em frente, sentia-me puxada para trás pelas dívidas da Teresa.

Uma noite, acordei com barulho na sala. Fui espreitar e vi a minha mãe sentada no sofá, rodeada de papéis espalhados por todo o lado: cartas do banco, avisos de corte de água e luz, contratos de crédito rápido.

— Mãe… — sussurrei.

Ela olhou para mim com olhos vazios.

— Não sei o que fazer, Mariana… Eles vão levar tudo…

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. Por um momento, voltei a ser criança outra vez — mas já não havia ninguém para me proteger.

No dia seguinte, fui ao banco tentar negociar as dívidas. O gerente olhou para mim com pena:

— A sua mãe já está sinalizada como má pagadora há anos… Não há muito que possamos fazer sem garantias.

Saí dali com um nó no estômago. Senti raiva da minha mãe por nos ter posto naquela situação — mas também senti pena dela. Como é que alguém chega àquele ponto? Será que algum dia teve escolha?

As discussões começaram a ser diárias. Eu queria vender tudo o que tínhamos para pagar parte das dívidas e recomeçar do zero. Ela recusava-se:

— Não vou vender as coisas do teu pai! Nem pensar!

— Mãe, são só coisas! Não valem nada comparado com a nossa paz!

— Tu não percebes! — gritava ela. — Isto é tudo o que me resta!

Eu percebia mais do que ela imaginava. Sabia o que era agarrar-me ao pouco que tinha para não sentir o vazio.

Um dia recebi uma carta do tribunal: penhora iminente dos bens da casa. Senti-me sufocar. Liguei à minha mãe no trabalho:

— Mãe… recebemos uma carta do tribunal…

Ela ficou em silêncio do outro lado.

— Mariana… desculpa…

Foi nesse dia que decidi sair de casa. Arranjei um quarto pequeno em Lisboa, partilhado com duas colegas que mal conhecia. Levei apenas uma mala com roupa e um retrato antigo da minha avó.

A Teresa chorou durante dias. Ligava-me todas as noites:

— Mariana, volta para casa… Eu prometo que vou mudar…

Mas eu sabia que não ia mudar. Já tinha ouvido aquela promessa demasiadas vezes.

Os meses passaram e comecei finalmente a respirar sem medo do telefone tocar ou da campainha soar à porta. Arranjei um emprego melhor num escritório e inscrevi-me num curso à noite.

Mas a culpa nunca me largou completamente. Aos domingos ia visitar a minha mãe — agora sozinha num apartamento quase vazio depois da penhora dos móveis e dos eletrodomésticos.

— Mariana… — dizia ela baixinho — Tu achas que algum dia me vais perdoar?

Eu não sabia responder-lhe. Queria perdoá-la — mas como perdoar alguém por nos roubar os sonhos?

Um dia encontrei-a sentada à janela, olhar perdido no Tejo.

— Sabes… às vezes penso se teria sido diferente se o teu pai tivesse ficado connosco — disse ela.

Sentei-me ao lado dela e ficámos em silêncio durante muito tempo.

Hoje tenho trinta anos e continuo a lutar para não repetir os erros da Teresa. Ainda sinto medo de gastar dinheiro em coisas simples — um jantar fora parece-me sempre um luxo proibido.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou conseguir libertar-me deste legado? Ou será que estamos todos condenados a carregar os pecados dos nossos pais?

E vocês? Onde acaba o dever de um filho? Até onde devemos ir por quem amamos?