A Decisão de Julieta: Entre o Amor e a Tempestade

— Mãe, por favor, deixa-me entrar. — A voz da Ana tremia, e eu soube logo que algo terrível tinha acontecido. Abri a porta e vi-a, encharcada pela chuva de março, com a Leonor agarrada à sua mãozinha, os olhos vermelhos de tanto chorar. O meu coração disparou.

— O que se passa, filha? — perguntei, tentando manter a calma enquanto as lágrimas dela começavam a cair sem controlo.

— O Pedro… ele… ele pôs-nos fora de casa. — A voz dela era um sussurro, mas cada palavra era como um murro no estômago.

Abracei-as às duas, sentindo o peso do mundo cair-me nos ombros. A Leonor enterrou a cara no meu casaco, soluçando baixinho. Fechei a porta atrás de nós e conduzi-as para a sala, onde o cheiro do café ainda pairava no ar. Sentei-me ao lado da Ana no sofá, e ela desabou.

— Ele disse que não aguentava mais… Que eu sou uma fraca, que não faço nada direito… — Ana tapou o rosto com as mãos. — E eu só queria que ele me visse, mãe. Só queria que ele me amasse como antes.

Olhei para ela e vi-me ali refletida, trinta anos antes, quando o teu pai me deixou com dois filhos pequenos e uma casa cheia de dívidas. O medo, a vergonha, a sensação de falhar enquanto mulher e mãe. Mas agora era diferente. Agora era eu quem tinha de ser forte.

— Ana, ouve-me bem — disse-lhe, segurando-lhe as mãos geladas. — Tu não és fraca. És a mulher mais corajosa que conheço. E enquanto eu cá estiver, nunca te vai faltar um teto nem amor.

A Leonor olhava para mim com aqueles olhos grandes e assustados. Sentei-a ao colo e tentei sorrir-lhe.

— Queres um chocolate quente? — perguntei-lhe. Ela acenou com a cabeça, ainda sem falar.

Enquanto preparava o chocolate na cozinha, ouvi a Ana ao telefone com o Pedro. A voz dela subia e descia em desespero:

— Por favor, Pedro… pensa na Leonor! Não podes simplesmente virar-nos as costas assim!

Fechei os olhos por um instante. Lembrei-me das noites em que chorei sozinha na cozinha, com medo do futuro. Lembrei-me das vizinhas a cochichar à janela: “Lá vai a Julieta, coitada… O marido fugiu-lhe com outra.” Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim.

Quando voltei à sala com as canecas fumegantes, Ana estava sentada em silêncio, os olhos perdidos no vazio. Sentei-me ao lado dela e puxei-a para mim.

— Vamos ultrapassar isto juntas — prometi-lhe.

Nos dias seguintes, a casa encheu-se de silêncios pesados e olhares furtivos. A Leonor acordava a meio da noite a chorar pelo pai. A Ana passava horas fechada no quarto, sem comer nem falar. Eu fazia o que podia: cozinhava os pratos preferidos delas, punha música suave a tocar, tentava manter alguma normalidade.

Mas a vila é pequena e as notícias correm depressa. No supermercado, senti os olhares das vizinhas cravados em mim.

— Então, Julieta? A tua Ana voltou para casa? — perguntou-me a Dona Emília, com aquele tom fingido de preocupação.

— Voltou sim, Dona Emília. E está muito bem acompanhada — respondi-lhe com um sorriso forçado.

Mas por dentro sentia-me a desmoronar. À noite, quando tudo estava em silêncio, dava por mim a pensar se tinha falhado como mãe. Se devia ter feito mais para evitar que a Ana escolhesse um homem como o Pedro. Se devia ter sido mais dura ou mais carinhosa. As dúvidas corroíam-me.

Uma tarde, o meu filho Luís apareceu sem avisar. Entrou na sala com o seu ar apressado e olhou para a irmã com uma mistura de pena e irritação.

— Então é assim? Voltaste para casa da mãe? — perguntou à Ana.

Ela não respondeu. Eu levantei-me logo:

— Luís, não é altura para julgamentos! A tua irmã precisa de apoio, não de críticas!

Ele suspirou e passou as mãos pelo cabelo.

— Mãe, tu sabes como é esta terra… As pessoas falam! E eu tenho de ouvir bocas no trabalho por causa disto!

Senti uma fúria surda crescer dentro de mim.

— E achas que isso é mais importante do que o sofrimento da tua irmã? — perguntei-lhe.

Ele ficou calado por uns segundos antes de sair da sala sem dizer mais nada.

Nessa noite, sentei-me ao lado da Ana na cama dela. Ela estava encolhida sob os lençóis, os olhos inchados de tanto chorar.

— Mãe… achas que algum dia vou voltar a ser feliz? — perguntou-me ela num fio de voz.

Abracei-a com força.

— Vais sim, filha. Mas tens de te permitir sentir tudo isto primeiro. Não tenhas vergonha da dor. Só assim vais conseguir seguir em frente.

Os dias foram passando devagar. A Ana começou a ajudar-me na mercearia da família. Aos poucos foi recuperando alguma cor no rosto. A Leonor fez amizade com uma menina da escola nova e começou a sorrir outra vez.

Mas o Pedro não desistia de atormentar-nos. Telefonava à Ana só para lhe dizer que ela era inútil, que nunca ia encontrar ninguém melhor do que ele. Uma noite apareceu bêbado à porta da minha casa aos gritos:

— Devolve-me a minha filha! Tu és uma má mãe! — berrava ele na rua.

Acordei toda a vizinhança. Liguei para a GNR e só descansei quando o levaram dali.

No dia seguinte fui chamada à escola da Leonor porque ela tinha tido um ataque de ansiedade durante as aulas. Senti-me impotente perante tanta dor espalhada pela minha família.

Foi então que decidi procurar ajuda profissional para todas nós. Marquei consultas com uma psicóloga na cidade vizinha e insisti para que tanto a Ana como a Leonor fossem comigo.

Ao início foi difícil convencer a Ana:

— Mãe, eu não sou maluca! Não preciso dessas coisas…

Mas insisti:

— Não é fraqueza pedir ajuda, filha. É coragem.

Pouco a pouco fomos encontrando algum equilíbrio. A psicóloga ajudou-nos a perceber que não éramos culpadas pelo comportamento do Pedro. Que tínhamos direito à nossa paz.

O Luís também acabou por voltar atrás nas suas críticas quando viu o sofrimento real da irmã e da sobrinha. Começou a vir jantar connosco aos domingos outra vez e até levou a Leonor ao parque algumas vezes.

Mas nem tudo ficou resolvido num passe de mágica. Ainda hoje sinto o peso dos olhares na rua, dos comentários sussurrados atrás das costas. Ainda há noites em que acordo sobressaltada com medo do futuro das minhas filhas e neta.

No entanto, aprendi algo fundamental: ser mãe é estar disposta a enfrentar todas as tempestades pelo bem dos nossos filhos — mesmo quando isso significa desafiar tradições ou enfrentar preconceitos enraizados numa terra pequena como esta.

Agora olho para trás e vejo como crescemos todas juntas nesta dor partilhada. E pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao medo do julgamento alheio? Quantas mães sacrificam os seus sonhos pelo bem dos filhos sem nunca serem reconhecidas?

Será que algum dia vamos conseguir quebrar este ciclo? O que fariam vocês no meu lugar?