A Coragem de Ser Eu: A História de Tiago

— Tiago, outra vez com essa camisola ridícula? — ouvi a voz do Diogo ecoar pelo corredor da escola, carregada de desprezo. Senti o calor subir-me ao rosto, as mãos a suar. Não era só a camisola, era eu inteiro que parecia estar sempre errado. O Diogo e os outros riam-se, apontavam, faziam piadas sobre o meu cabelo encaracolado, os meus óculos grossos, o meu corpo franzino.

A cada passo que dava pelos corredores do Colégio São Martinho, sentia-me mais pequeno. Ouvia os risos abafados, os cochichos, as palavras cortantes: “cromo”, “esquisito”, “ninguém gosta dele”. Tentava ignorar, fingir que não me importava, mas à noite, deitado na cama do meu quarto minúsculo em Almada, as palavras voltavam todas, mais pesadas ainda.

A minha mãe, a Dona Rosa, trabalhava horas intermináveis como empregada de limpeza. O meu pai tinha-nos deixado quando eu tinha seis anos. Desde então, éramos só nós dois e o silêncio da casa. Ela fazia o impossível para que nada me faltasse, mas havia coisas que ela não podia comprar: confiança, amigos, paz de espírito.

— Tiago, tens de ser forte — dizia-me ela, sentando-se na beira da cama enquanto eu tentava esconder as lágrimas. — As pessoas só gozam porque não te conhecem de verdade.

Mas eu sentia que ninguém queria conhecer-me. Na escola, os professores viam-me como o aluno calado que tirava boas notas mas não participava. Os colegas evitavam-me ou usavam-me como alvo fácil. Até o João, que em tempos tinha sido meu amigo, agora preferia juntar-se ao grupo dos populares.

Um dia, depois de mais uma manhã de provocações — desta vez tinham atirado o meu lanche para o lixo — sentei-me sozinho no recreio. Olhava para o chão, tentando não chorar. Foi então que ouvi uma voz suave:

— Posso sentar-me aqui?

Levantei os olhos e vi a Marta, uma rapariga do 8º ano, com um sorriso tímido. Não entendi porque queria falar comigo.

— Claro… — murmurei.

Ela sentou-se ao meu lado e tirou da mochila uma maçã.

— Vi o que fizeram ao teu lanche. Queres metade?

Fiquei sem saber o que dizer. Ninguém me oferecia nada há muito tempo. Aceitei a maçã com mãos trémulas.

— Não ligues ao Diogo — disse ela. — Ele só goza porque tem medo de ser gozado também.

Aquelas palavras ficaram comigo durante dias. Pela primeira vez em muito tempo, alguém via em mim mais do que um alvo fácil. A Marta começou a sentar-se comigo todos os dias no recreio. Falávamos sobre livros — ambos adorávamos ler — e sobre sonhos para o futuro. Ela queria ser veterinária; eu sonhava ser escritor.

Mas a aproximação da Marta não passou despercebida. O Diogo e os outros começaram a gozar ainda mais: “Olha o Tiago arranjou namorada! Deve ser por pena!”. A Marta enfrentava-os com um olhar firme:

— Vocês não têm mais nada para fazer?

Eu admirava aquela coragem. Queria ser assim também.

Em casa, contei à minha mãe sobre a Marta. Ela sorriu com ternura:

— Vês? Às vezes basta uma pessoa para mudar tudo.

Mas nem tudo mudou assim tão facilmente. Uma tarde, ao sair da escola, fui cercado pelo Diogo e dois amigos dele.

— Então, Tiaguinho? Vais chorar para a mamã? — riu-se ele, empurrando-me contra a parede.

Tentei fugir mas eles eram mais fortes. Rasgaram-me a mochila e atiraram os meus livros para o chão.

— Deixa-o em paz! — gritou uma voz atrás de nós.

Era o senhor António, o porteiro da escola. Os rapazes fugiram a correr.

O senhor António ajudou-me a apanhar os livros e olhou-me nos olhos:

— Não deixes que eles te tirem o sorriso, rapaz. Já vi muitos como eles e muitos como tu. És mais forte do que pensas.

Naquele dia, quando cheguei a casa com a mochila rasgada e os olhos inchados de chorar, a minha mãe abraçou-me com força.

— Não aguento mais isto, mãe — disse-lhe entre soluços. — Porque é que ninguém gosta de mim?

Ela ficou em silêncio por um momento e depois respondeu:

— O mundo pode ser cruel, filho. Mas tu tens algo que eles não têm: bondade no coração. E isso ninguém te pode tirar.

No dia seguinte, fui à escola com medo mas também com uma estranha determinação. A Marta esperava-me à porta.

— Hoje vamos juntos para a aula — disse ela.

Entrámos lado a lado e senti os olhares sobre nós. Mas pela primeira vez não baixei os olhos.

As semanas passaram e comecei a perceber que havia outros como eu: o Pedro da turma B, sempre sozinho; a Ana que gaguejava quando falava; até a professora Teresa parecia carregar uma tristeza antiga nos olhos.

Comecei a escrever sobre tudo isto num caderno velho: histórias de coragem silenciosa, de pequenas vitórias diárias. Mostrei um dos textos à Marta e ela ficou entusiasmada:

— Devias mostrar isto à professora Teresa!

Com medo mas também esperança, entreguei-lhe o caderno no final da aula.

No dia seguinte ela chamou-me à secretária:

— Tiago, tens um talento raro para escrever sentimentos verdadeiros. Já pensaste em participar no concurso literário da escola?

Nunca tinha pensado nisso. Mas inscrevi-me. Escrevi sobre um rapaz invisível que encontra luz nos gestos simples dos outros.

Quando anunciaram os vencedores no auditório cheio de alunos e professores, ouvi o meu nome ecoar pelo microfone:

— Primeiro prémio: Tiago Martins!

O coração batia tão forte que pensei que ia desmaiar. Subi ao palco entre aplausos — alguns sinceros, outros forçados — mas naquele momento senti-me visto pela primeira vez.

A Marta abraçou-me no final:

— Sabes? Sempre soube que eras especial.

O Diogo nunca pediu desculpa mas deixou de me incomodar tanto. Talvez porque percebeu que já não tinha poder sobre mim.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aqueles dias escuros. Ainda tenho medo às vezes; ainda duvido de mim próprio. Mas aprendi que há beleza na diferença e força na vulnerabilidade.

Pergunto-me: quantos Tiagos andam por aí à espera de um gesto de bondade? E se todos nós fôssemos um pouco mais como a Marta ou o senhor António? Talvez o mundo fosse um lugar menos solitário.