A Convidada Inesperada: O Meu Casamento à Prova

— Não é justo! — gritou a Beatriz, batendo com a porta do quarto tão forte que os quadros da sala estremeceram. Fiquei ali parada, com a mão ainda no ar, sem saber se devia ir atrás dela ou deixar que o silêncio fizesse o seu trabalho. O Rui olhou para mim, os olhos cansados de quem já não sabe como mediar a guerra entre duas mulheres que nunca pediram para partilhar o mesmo teto.

Nunca pensei que a minha vida se resumisse a isto: discussões sobre quem deixou a loiça por lavar, sobre quem ocupa mais espaço na casa de banho, sobre o volume da televisão ou o cheiro do tabaco que ela insiste em fumar à janela. Quando casei com o Rui, há dois anos e meio, achei que o amor era suficiente. Que bastava querer muito para tudo correr bem. Mas ninguém me avisou que amar um homem divorciado era também herdar as dores e as histórias dele.

A Beatriz apareceu numa tarde de domingo, mala na mão e olhos vermelhos. Tinha discutido com a mãe e decidiu que queria viver connosco. O Rui não hesitou: abriu-lhe a porta e o coração. Eu sorri, tentei ser compreensiva, mas por dentro sentia-me invadida. O nosso pequeno T2 em Almada nunca pareceu tão apertado. O sofá deixou de ser só nosso, as refeições passaram a ser para três e as conversas à noite foram substituídas por silêncios desconfortáveis.

— Ela precisa de tempo — dizia-me o Rui, baixinho, quando eu me queixava das birras e das respostas tortas.

— E eu? Eu não preciso? — respondia-lhe, sentindo-me egoísta por não conseguir gostar dela como devia.

A verdade é que tentei. Juro que tentei. Levei-a ao cinema, fiz-lhe panquecas ao domingo, comprei-lhe um presente no aniversário. Mas nada parecia suficiente. Ela olhava para mim como se eu fosse uma intrusa na vida dela e do pai. Às vezes apanhava-a a olhar para fotografias antigas da mãe e do Rui, como se quisesse lembrar-se de um tempo em que eu não existia.

Uma noite, ouvi-a chorar no quarto. Fiquei à porta, indecisa. Entrei devagarinho.

— Beatriz? Precisas de alguma coisa?

Ela limpou as lágrimas com as costas da mão e virou-me as costas.

— Não preciso de ti aqui — murmurou.

Saí em silêncio, com o coração apertado. Senti-me rejeitada na minha própria casa.

Os dias foram passando e as discussões aumentaram. O Rui começou a chegar mais tarde do trabalho. Dizia que era por causa dos projetos novos na empresa, mas eu sabia que era para evitar o ambiente pesado cá em casa. Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem tinha deixado a luz da casa de banho acesa, sentei-me na varanda e chorei baixinho. Senti-me sozinha como nunca antes.

No Natal, tentei fazer tudo perfeito: árvore montada, bacalhau no forno, presentes embrulhados com fitas coloridas. Mas quando chegou a hora da ceia, a Beatriz anunciou que ia jantar com a mãe. O Rui ficou calado. Eu sorri para disfarçar a dor.

— Não fiques assim — disse ele depois, pousando a mão no meu ombro.

— Assim como? — perguntei, já sem forças para fingir.

— Como se estivesses sempre à espera de aprovação dela.

— Não estou à espera de aprovação nenhuma! Só queria sentir-me parte desta família…

Ele suspirou e afastou-se. Fiquei ali sozinha à mesa posta para três.

Os meses seguintes foram uma sucessão de pequenas derrotas. A Beatriz começou a chegar tarde a casa, às vezes nem avisava onde estava. O Rui preocupava-se, eu tentava ajudar mas ela recusava qualquer aproximação. Um dia apareceu com um piercing no nariz e uma tatuagem nova no braço. O Rui ficou furioso; eu tentei acalmar os ânimos mas acabei por ser acusada de querer controlar tudo.

— Tu não és minha mãe! — gritou ela na minha cara.

— Eu sei! Mas estou aqui para ti…

Ela riu-se com desdém e saiu porta fora.

Comecei a questionar tudo: o casamento, o amor, até quem eu era antes disto tudo começar. Senti-me perdida entre dois papéis: mulher apaixonada e madrasta indesejada. Os meus amigos diziam para ter paciência, que era uma fase. A minha mãe dizia para pensar em mim primeiro.

Uma noite, depois de mais uma discussão entre pai e filha sobre as notas da escola, sentei-me no sofá e olhei para o Rui:

— Achas mesmo que isto vai resultar?

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.

— Não sei — disse finalmente. — Mas não quero perder-te.

Chorei tudo o que tinha guardado durante meses. Ele abraçou-me forte mas senti que havia uma distância entre nós impossível de atravessar.

No dia seguinte, a Beatriz não voltou a casa depois das aulas. O Rui entrou em pânico; eu tentei manter a calma mas por dentro sentia-me culpada. E se ela tivesse fugido por minha causa? Passámos horas ao telefone até ela finalmente atender:

— Estou bem. Só preciso de espaço.

Quando voltou, estava diferente: mais magra, mais calada. Não quis falar sobre onde esteve nem com quem. O Rui tentou conversar mas ela fechou-se ainda mais.

Foi nessa altura que comecei a pensar em sair de casa. Falei com uma amiga sobre arrendar um quarto em Lisboa. O Rui percebeu logo pela forma como comecei a arrumar as minhas coisas.

— Vais mesmo desistir?

Olhei para ele com lágrimas nos olhos:

— Não sei se consigo continuar assim…

Ele não respondeu. Ficámos os dois em silêncio enquanto a Beatriz ouvia música alta no quarto ao lado.

Agora escrevo estas palavras sentada na mesma varanda onde chorei tantas vezes. Ainda não tomei uma decisão definitiva mas sei que nada será como antes. Pergunto-me se algum dia serei capaz de amar esta família como ela é — ou se terei coragem de escolher a minha própria felicidade antes de tudo o resto.

E vocês? Já sentiram que estavam a lutar por um lugar numa história que não vos pertence? O que fariam no meu lugar?