A Conversa Secreta Que Mudou o Destino da Minha Família
— Mãe, posso ir brincar lá fora? — perguntou o Tomás, com aquela ansiedade típica de quem espera algo grande. O seu olhar brilhava, mas eu sentia um peso estranho no ar. Talvez fosse cansaço, talvez fosse só o pressentimento de que aquela tarde não seria igual às outras.
— Vai, mas não te afastes muito — respondi, tentando sorrir. O Ricardo estava na cozinha, a mexer no telemóvel, alheio ao mundo. Desde que perdeu o emprego no banco, há seis meses, parecia sempre distante, como se estivesse preso noutro tempo.
O Tomás andava há meses a pedir-nos um cão. Eu hesitava — sabia o trabalho que dava, as despesas, a responsabilidade. Mas o Ricardo insistia: “Faz-lhe bem. Ele anda tão sozinho desde que a tua mãe morreu.” E era verdade. A morte da minha mãe tinha deixado um vazio enorme em casa. O Tomás sentia falta da avó, e eu sentia falta de mim própria.
Naquela noite, depois de deitar o Tomás, ouvi vozes baixas vindas da sala. Estranhei — era tarde para telefonemas. Fui pé ante pé até à porta entreaberta e ouvi o Ricardo ao telefone:
— Sim, sim… Eu sei que prometi. Mas não sei se consigo continuar assim. Ela desconfia de tudo… — A voz dele tremia. — Não posso falar muito alto. Amanhã falamos melhor.
O meu coração disparou. Quem era aquela pessoa? O que é que ele prometeu? Voltei para o quarto com a cabeça a latejar. Passei a noite em claro, a imaginar cenários: uma amante? Dívidas? Um segredo antigo?
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço, ajudei o Tomás com os trabalhos da escola e fingi não reparar no olhar ausente do Ricardo. Mas dentro de mim crescia uma angústia insuportável.
À tarde, quando o Tomás chegou da escola, trazia um desenho nas mãos: era ele com um cão castanho ao lado. “Chama-se Bolota”, disse-me com orgulho. Senti uma pontada no peito — como podia negar-lhe aquele desejo tão simples?
O Ricardo apareceu atrás de mim e pousou a mão no meu ombro:
— Estive a ver uns anúncios de adoção… Talvez possamos ir ver um cão este fim-de-semana.
Olhei-o nos olhos, procurando respostas. Ele desviou o olhar.
Na sexta-feira à noite, depois do jantar, decidi confrontá-lo.
— Ricardo, ouvi-te ontem ao telefone. Com quem estavas a falar?
Ele ficou pálido. Engoliu em seco e baixou a cabeça.
— Era o meu irmão… O Pedro. Ele pediu-me dinheiro outra vez. Está metido em problemas.
— E tu? Vais ajudá-lo? — perguntei, sentindo a raiva crescer.
— Não sei… Não posso deixá-lo sozinho. Mas também não quero envolver-te nisto.
— Já me envolveste! — gritei sem querer. O Tomás apareceu à porta, assustado.
— Mãe? Está tudo bem?
Respirei fundo e sorri-lhe:
— Está tudo bem, querido. Vai ver televisão.
O Ricardo saiu para fumar um cigarro na varanda. Fiquei sozinha na cozinha, a olhar para as paredes frias e brancas. Senti-me traída — não por uma amante, mas por segredos que nunca partilhámos.
No sábado fomos ao canil municipal. O Tomás corria de jaula em jaula, encantado com cada focinho peludo que via. Eu tentava sorrir, mas sentia-me distante, como se estivesse a ver tudo através de um vidro.
Acabámos por trazer para casa uma cadelinha preta e branca que o Tomás batizou de Bolota. Nos primeiros dias foi uma alegria: risos, corridas pelo jardim, fotografias para enviar aos avós paternos.
Mas à noite, quando tudo acalmava, eu ouvia o Ricardo ao telefone na varanda. Sempre em voz baixa, sempre nervoso.
Uma noite decidi segui-lo discretamente até à rua. Vi-o entrar no carro e sair disparado em direção ao centro da cidade. Esperei meia hora antes de ligar-lhe:
— Onde estás?
— Precisei de sair para apanhar ar — respondeu ele rapidamente.
— Não mintas mais! — gritei-lhe ao telefone. — Diz-me a verdade!
Silêncio do outro lado.
Quando voltou para casa já passava da meia-noite. Sentou-se à minha frente na sala escura e finalmente falou:
— O Pedro pediu-me dinheiro porque está envolvido em apostas ilegais. Se não pagar as dívidas dele… ameaçaram fazer-lhe mal.
Senti o chão fugir-me dos pés.
— E tu vais meter-nos nisso? Vais pôr em risco o nosso filho?
Ele chorou pela primeira vez em anos.
— Não sei o que fazer… Não quero perder-te nem ao Tomás.
Durante semanas vivemos num limbo: eu desconfiada de cada passo dele; ele cada vez mais fechado; o Tomás feliz com a Bolota mas atento à tensão entre nós.
Um domingo à tarde, enquanto passeávamos no parque com o cão, o Tomás perguntou:
— Mãe… porque é que tu e o pai já não riem juntos?
A pergunta dele foi como uma facada. Olhei para o Ricardo e vi nos olhos dele o mesmo medo que sentia em mim: medo de perdermos tudo aquilo por que lutámos.
Nessa noite sentei-me com ele à mesa da cozinha e disse-lhe:
— Ou resolves isto com o teu irmão ou vais embora de casa até conseguires perceber o que queres da tua vida.
Ele ficou em silêncio durante minutos intermináveis e depois assentiu lentamente.
Na manhã seguinte fez as malas e saiu sem olhar para trás. O Tomás chorou durante dias; eu tentei ser forte por ele — mas todas as noites chorava baixinho na almofada.
Passaram-se meses até o Ricardo voltar a casa. Disse-me que tinha ajudado o irmão a procurar tratamento para o vício do jogo e que estava disposto a recomeçar do zero connosco.
Ainda hoje não sei se fiz bem ou mal em dar-lhe uma segunda oportunidade. O Tomás está mais feliz com a Bolota; eu tento reconstruir a confiança perdida; o Ricardo esforça-se por ser um pai presente e um marido honesto.
Mas às vezes pergunto-me: quantos segredos cabem numa família antes de ela se desmoronar? E será possível recomeçar quando já se perdeu tanto?