A Casa Que Não Herdarão: O Meu Último Ato de Liberdade
— Então, Maria do Céu, já pensaste no testamento? — perguntou a minha irmã, Lurdes, com aquele tom disfarçado de preocupação, mas que eu já conheço tão bem. Estávamos sentadas à mesa da cozinha, o cheiro do café acabado de fazer a pairar no ar, mas o sabor amargo vinha das palavras dela.
Olhei-a nos olhos, tentando decifrar se havia ali algum resquício de carinho ou se era só cobiça. Aos 62 anos, aprendi a distinguir as duas coisas. Desde que fiquei sozinha nesta casa — a mesma onde cresci, herança dos nossos pais —, os meus irmãos e sobrinhos começaram a aparecer mais vezes. Não para saberem de mim, mas para verem se ainda respiro.
A minha vida nunca foi fácil. Casei tarde, aos 28 anos, com o António, colega do escritório de contabilidade onde trabalhava. Parecia um homem sério, mas seis meses depois do casamento trouxe a amante para dentro da nossa casa. Lembro-me do cheiro do perfume barato dela a invadir o quarto onde eu sonhava ter filhos. Não aguentei. Fiz as malas numa noite chuvosa e fui-me embora sem olhar para trás.
Voltei para esta casa, onde a minha mãe ainda vivia. Ela recebeu-me de braços abertos, mas nunca perdoou o António. “Homem que faz isso não merece nem o pão que come”, dizia ela. Depois da morte dela, fiquei sozinha. Os meus irmãos seguiram as suas vidas: o Manuel foi para França, a Lurdes casou com um empreiteiro e ficou aqui perto, e o João perdeu-se pelo álcool.
Durante anos trabalhei para pagar as contas e manter a casa em pé. Não tive filhos — talvez por medo de repetir os erros dos meus pais ou por falta de coragem para começar de novo. Os meus sobrinhos cresceram a ouvir dizer que esta casa seria deles um dia. “Quando a tia Maria morrer, ficamos com tudo!”, ouvi uma vez o filho da Lurdes dizer à irmã. Estavam no quintal e pensavam que eu não ouvia.
A solidão pesa mais à noite. Sento-me na sala, rodeada de fotografias antigas: os meus pais no casamento, eu e os meus irmãos pequenos na praia da Nazaré, o António ao meu lado num Natal distante. Às vezes pergunto-me se fiz bem em nunca tentar outra vez. Mas depois lembro-me das discussões, dos gritos abafados atrás das portas fechadas, do olhar vazio do António quando lhe pedi explicações.
Os meus irmãos começaram a pressionar-me para vender a casa. Dizem que é grande demais para mim, que devia ir para um lar e aproveitar os últimos anos sem preocupações. Mas eu sei o que querem: dividir o dinheiro entre eles e esquecer que eu existi. A Lurdes até trouxe um agente imobiliário cá a casa sem me avisar. “Só para ver quanto vale”, disse ela, como se eu fosse uma criança.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o futuro da casa, sentei-me à secretária e escrevi uma carta ao meu advogado. Pedi-lhe para vir cá a casa. Quando chegou, expliquei-lhe tudo: queria deixar a casa à Associação dos Animais Abandonados da vila. Sempre gostei de animais — tenho dois gatos e um cão que me fazem companhia desde que os apanhei na rua.
O advogado olhou-me com surpresa. “Tem a certeza? A família pode contestar…”
— Que contestem — respondi. — Pelo menos assim sei que não vão ficar com nada por ganância.
Os dias passaram e comecei a notar olhares diferentes dos meus irmãos. A Lurdes vinha mais vezes, trazia bolos e perguntava se precisava de alguma coisa. O Manuel telefonava de França todas as semanas. Até o João apareceu um dia à porta, bêbado mas com um ramo de flores roubadas do cemitério.
Uma tarde, ouvi-os a discutir no quintal:
— Ela está a ficar senil — dizia o Manuel ao telefone. — Temos de fazer alguma coisa antes que ela faça asneira.
— Achas que ela vai mesmo deixar tudo aos gatos? — perguntou a Lurdes.
— Se for preciso metemo-la num lar à força — respondeu ele.
O sangue gelou-me nas veias. Era isto que valia para eles: um obstáculo entre eles e uma casa velha.
Comecei a fechar as portas à chave mesmo durante o dia. Dormia mal, acordava com qualquer barulho. Uma noite acordei com passos no corredor. Levantei-me devagar e vi uma sombra junto à porta da sala. Era o João, bêbado outra vez.
— O que fazes aqui? — perguntei, tentando não tremer.
— Vim buscar umas coisas… — murmurou ele.
— Sai já daqui antes que chame a polícia!
Ele saiu aos tropeções e nunca mais voltou.
No dia seguinte liguei ao advogado e pedi-lhe para acelerar tudo. Queria garantir que nada mudava se me acontecesse alguma coisa.
Os meses passaram e fui ficando cada vez mais isolada. Os vizinhos começaram a reparar na movimentação estranha à porta da minha casa. Um dia, a dona Emília bateu-me à porta:
— Está tudo bem consigo, Maria do Céu? Tenho visto muita gente estranha por aqui…
Agradeci-lhe a preocupação e convidei-a para um chá. Falámos durante horas sobre os velhos tempos, sobre como as famílias mudaram e como hoje em dia só se pensa em dinheiro.
No Natal desse ano ninguém me veio visitar. Passei o dia com os meus animais e uma fatia de bolo-rei comprado na pastelaria da esquina. Senti tristeza, claro, mas também uma estranha sensação de liberdade.
Um dia recebi uma carta do advogado: tudo estava tratado, a casa seria da associação quando eu partisse. Senti um peso sair-me dos ombros.
Quando contei à Lurdes ela ficou branca como a cal das paredes:
— Tu não podes fazer isso! Somos família!
Olhei-a nos olhos:
— Família é quem cuida, não quem espera pela morte dos outros.
Ela saiu porta fora sem dizer mais nada.
Agora passo os dias no jardim com os meus animais, ouvindo os pássaros e sentindo finalmente paz. Sei que muitos vão criticar-me por esta decisão. Mas pergunto-vos: quantos de nós já fomos vistos apenas como obstáculos? Quantos já sentiram que só valem pelo que têm?
Será egoísmo proteger aquilo que construímos dos próprios laços de sangue? Ou será apenas justiça?