A Casa Que Não Herdarão: O Meu Último Ato de Liberdade

— Então, tia Rosa, já pensou em fazer o testamento? — perguntou a minha sobrinha Andreia, com aquele sorriso falso que já conheço desde que era criança.

A chávena de chá tremeu-me nas mãos. Olhei-a nos olhos, tentando perceber até onde ia a sua ousadia. O relógio da sala marcava cinco da tarde e o sol entrava obliquamente pela janela, iluminando o pó que dançava no ar. O silêncio entre nós era pesado, só quebrado pelo tilintar da colher na chávena.

— Ainda não decidi nada, Andreia. Tenho tempo — respondi, tentando manter a voz firme.

Ela sorriu de novo, mas os olhos não sorriam. — Sabe como é… nunca se sabe o dia de amanhã. E esta casa… bem, seria uma pena se ficasse para o Estado.

A frase ficou a pairar no ar como uma ameaça velada. Não era a primeira vez que alguém da família me abordava sobre o assunto. Desde que fiz 60 anos, parece que todos se lembraram de mim. Primos afastados, sobrinhos que nunca me ligaram, até o meu irmão mais novo, o António, com quem não falo há anos desde aquela discussão por causa do terreno dos nossos pais.

A verdade é que vivo sozinha há muito tempo. O meu casamento foi um desastre anunciado. Casei-me com o Jorge aos 28 anos, colega do escritório de advogados onde trabalhava. Era charmoso, divertido e parecia amar-me. Mas seis meses depois do casamento, trouxe a amante para dentro da nossa casa. Sim, para dentro da nossa casa! Lembro-me do cheiro do perfume dela misturado com o dele, das risadas abafadas atrás da porta do quarto de hóspedes. Aguentei dois dias. No terceiro, fiz as malas e saí. Nunca mais voltei.

Desde então, nunca mais confiei verdadeiramente em ninguém. Não tive filhos — não por falta de vontade, mas porque nunca mais consegui entregar-me a alguém. Os anos passaram e fui-me habituando à solidão. A casa tornou-se o meu refúgio e também a minha prisão.

Os meus dias são simples: acordo cedo, preparo o pequeno-almoço, leio o jornal na varanda e passeio pelo bairro. Cumprimento os vizinhos — Dona Emília, sempre com as suas histórias de antigamente; o Sr. Manuel, que me traz pão fresco ao domingo; e a pequena Beatriz, filha dos novos vizinhos brasileiros, que me chama de “vovó Rosa” e me faz sorrir.

Mas a família… ah, a família! Só aparecem quando precisam de alguma coisa. No Natal, trazem-me prendas baratas e sorrisos forçados. No resto do ano, sou invisível. Até agora.

Há dois meses, comecei a notar pequenas coisas fora do lugar em casa. Uma moldura caída, uma gaveta aberta. Pensei que era distração minha — afinal, a idade não perdoa. Mas depois encontrei a Andreia a remexer nos meus papéis na sala.

— Procurava alguma coisa? — perguntei.

Ela corou e balbuciou qualquer coisa sobre procurar um livro antigo.

Fiquei alerta. Comecei a ouvir conversas sussurradas quando chegava à cozinha de repente. O António ligou-me duas vezes na mesma semana — coisa inédita! Até sugeriu que eu fosse viver para um lar: “Assim estás mais acompanhada e nós tratamos da casa por ti”.

Foi aí que percebi: estavam todos à espera que eu morresse para ficarem com a casa. Não por carinho ou saudade — mas por ganância.

Durante noites inteiras não dormi. Revi mentalmente cada conversa, cada gesto suspeito. Senti raiva, tristeza e uma solidão ainda maior do que aquela a que já estava habituada.

Uma noite chuvosa, sentei-me na cozinha com um copo de vinho e decidi: não lhes daria esse prazer. A minha casa não seria o prémio da sua indiferença.

No dia seguinte fui ao cartório e marquei uma reunião com a advogada. Expliquei-lhe tudo: queria doar a casa em vida para uma instituição de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica. Ela sorriu e disse-me que era possível.

— Tem a certeza? — perguntou ela.

— Absoluta — respondi sem hesitar.

Assinei os papéis com as mãos firmes. Senti-me livre pela primeira vez em muitos anos.

Quando contei à família no almoço de domingo seguinte, o silêncio foi ensurdecedor.

— Mas tia… isso é injusto! — gritou o António, batendo com o punho na mesa.

— Injusto? Injusto é só se lembrarem de mim quando vos convém! — respondi, sentindo uma força inesperada dentro de mim.

A Andreia choramingou algo sobre “família ser tudo”, mas eu já não ouvia. Pela primeira vez em décadas, sentia-me dona do meu destino.

Agora passo os dias em paz. A casa continua cheia das minhas memórias — boas e más — mas sei que um dia servirá para proteger quem realmente precisa.

Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem rodeadas de familiares que apenas esperam pela sua morte? Quantos de nós têm coragem de tomar as rédeas da própria vida até ao fim?

E vocês? O que fariam no meu lugar?