A Casa Que Me Resta: Entre o Amor e a Solidão

— Dona Teresa, precisamos conversar — a voz da Patrícia ecoou pela cozinha, fria como o mármore da bancada. Eu estava a preparar o café, como fazia todas as manhãs desde que o meu Rui era pequeno. O cheiro do café fresco misturava-se com o aroma das rosas do jardim, mas naquele instante, tudo pareceu azedar.

— Sim, Patrícia? — perguntei, tentando esconder o tremor na minha voz. Sabia que algo estava para acontecer. Desde que o meu Rui casou com ela, a casa nunca mais foi a mesma. O riso fácil deu lugar a silêncios pesados e olhares de soslaio.

Ela sentou-se à mesa, cruzando as pernas com uma elegância estudada. — Eu e o Rui achamos que talvez fosse melhor para si procurar um apartamento mais pequeno. Esta casa é grande demais para uma pessoa só… e nós precisamos de espaço para crescer como família.

O café quase me caiu das mãos. O meu coração disparou, como se quisesse fugir do peito. — Esta é a minha casa, Patrícia. Foi aqui que criei o Rui, foi aqui que vivi com o António durante quarenta anos. Não posso simplesmente ir-me embora.

Ela suspirou, impaciente. — Mas compreenda… O Rui trabalha tanto, eu também, e com o bebé a caminho precisamos de estabilidade. Não acha que já teve o seu tempo aqui?

O Rui entrou na cozinha nesse momento, desviando o olhar quando me viu com lágrimas nos olhos. — Mãe… não é nada pessoal. Só achamos que seria melhor para todos.

Lembrei-me do António, do sorriso dele quando plantámos as primeiras roseiras juntos, das noites frias em que nos abraçávamos no sofá da sala. Como podia abandonar tudo isso? Como podiam eles pedir-me tal coisa?

— Rui, esta casa é tudo o que me resta do teu pai. Não posso deixá-la — sussurrei, sentindo-me cada vez mais pequena.

Patrícia levantou-se abruptamente. — Não queremos discutir. Pense nisso. — E saiu, deixando um silêncio ensurdecedor atrás de si.

Os dias seguintes foram um tormento. O Rui evitava-me, passava horas fora de casa. A Patrícia fazia questão de me ignorar ou de deixar recados passivo-agressivos espalhados pela casa: “Por favor, não deixe loiça na pia”, “Lembre-se de desligar as luzes”. Pequenas farpas que me faziam sentir uma intrusa na minha própria casa.

À noite, sentava-me no quarto vazio e falava com o António em pensamento. “O que faço agora? Eles querem que eu desapareça…”

Uma tarde, ouvi-os a discutir no corredor.

— Ela não vai sair daqui! — dizia Rui, num tom baixo mas tenso.
— Então vamos viver assim para sempre? Eu não aguento! — respondeu Patrícia, quase a chorar.

Senti-me culpada por ser o motivo da discórdia entre eles. Mas também sentia raiva: porque é que ninguém pensava em mim? Porque é que eu tinha de ser descartada como um móvel velho?

No domingo seguinte, durante o almoço, tentei conversar.

— Patrícia, Rui… Sei que as coisas não estão fáceis. Mas esta casa é tudo para mim. Não posso ir para um lar ou para um apartamento qualquer. Aqui estão as minhas memórias, a minha vida…

Patrícia interrompeu-me:
— Teresa, não queremos pôr-la num lar! Só queremos construir a nossa família sem sentir que estamos sempre a ser observados.

O Rui olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas:
— Mãe… eu amo-te. Mas preciso de pensar na minha mulher e no nosso filho.

Senti uma dor aguda no peito. Era como se estivesse a perder o meu filho para sempre.

Nessa noite, liguei à minha irmã Maria.
— Eles querem que eu saia da minha própria casa… Não sei o que fazer…

Maria tentou animar-me:
— Teresa, tu tens direitos! Esta casa é tua! Não deixes que te empurrem para fora da tua vida!

Mas eu sabia que não era só uma questão de direitos legais. Era uma questão de amor, de pertença, de dignidade.

Os dias passaram e comecei a notar pequenas mudanças: as minhas fotografias iam desaparecendo das prateleiras; as flores do António foram arrancadas do jardim para dar lugar a brinquedos coloridos; até o cheiro da casa mudou — já não era o aroma das minhas sopas ou dos bolos do António ao domingo.

Uma noite, ouvi Patrícia ao telefone:
— Ela nunca vai sair daqui! Não sei quanto mais aguento…

Senti-me esmagada por uma tristeza profunda. Será que era mesmo um estorvo? Será que devia abdicar de tudo pelo bem deles?

No entanto, algo dentro de mim recusava-se a ceder. Lembrei-me das palavras do António: “Nunca deixes ninguém tirar-te aquilo que és”.

No dia seguinte, sentei-me com o Rui na sala onde costumávamos ver televisão juntos quando ele era criança.
— Rui… lembras-te quando caíste da bicicleta e eu te limpei os joelhos? Lembras-te das noites em que te lia histórias até adormeceres? Esta casa é feita dessas memórias. Não posso ir-me embora como se nada fosse.

Ele chorou pela primeira vez desde a morte do pai.
— Desculpa, mãe… Eu só queria paz entre nós todos…

Patrícia entrou na sala e ficou parada à porta.
— Teresa… talvez possamos encontrar uma solução. Não quero ser a vilã desta história.

Olhei para ela e vi nos seus olhos um cansaço igual ao meu.
— Talvez possamos aprender a viver juntas… pelo menos por agora.

A tensão diminuiu um pouco nos dias seguintes. Começámos a conversar mais — sobre receitas, sobre o bebé que aí vinha, sobre as saudades do António. Aos poucos, fui recuperando pequenos espaços na casa: uma fotografia aqui, uma flor ali.

Mas sei que nada será como antes. Sei que um dia terei de tomar uma decisão difícil: ficar e lutar pelo meu espaço ou partir para não ser um peso para ninguém.

Às vezes pergunto-me: será possível partilhar um lar sem perdermos quem somos? Ou será inevitável sermos empurrados para fora das nossas próprias vidas?

E vocês? O que fariam no meu lugar?