A Casa Prometida: Entre Segredos e Desilusões
— Então, mãe, quando é que podemos começar a mudar as nossas coisas para a casa? — perguntei, ainda com o vestido de noiva pendurado na cadeira do quarto, enquanto o Rui, meu marido, tentava disfarçar a ansiedade.
Ela olhou para mim com um sorriso estranho, quase forçado. O silêncio dela foi tão pesado que senti o ar a ficar denso. O Rui olhou para mim de lado, como quem pede que eu insista. Eu insisti.
— Mãe? Disseste que depois do casamento a casa era nossa. Que já estava tudo tratado com o pai…
Ela respirou fundo, sentou-se na beira da cama e olhou-me nos olhos. — Filha, há coisas que tu não sabes. E eu… eu não sei se agora é o melhor momento.
O Rui levantou-se de repente. — Dona Teresa, desculpe, mas precisamos mesmo de saber. Já pusemos tudo em pausa à espera desta decisão.
A minha mãe baixou os olhos. — Eu vou divorciar-me do teu pai.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me a cair num poço sem fundo. O Rui ficou branco. — Como assim? — balbuciei.
Ela continuou, a voz trémula: — Eu já não aguento mais. Esperei pelo vosso casamento para não estragar tudo. Mas agora… agora preciso de pensar em mim.
Lembrei-me de todas as conversas à mesa, das discussões abafadas atrás das portas fechadas, dos olhares frios entre os meus pais. Sempre achei que era só cansaço, rotina. Nunca imaginei isto.
— E a casa? — perguntei, quase num sussurro.
— A casa vai ser vendida. Não posso ficar com ela sozinha e o teu pai também não. Precisamos dividir tudo.
O Rui passou as mãos pela cabeça, desesperado. — Mas nós… planeámos tudo! A tua mãe prometeu!
Eu só conseguia pensar em como tudo parecia uma mentira. A promessa da casa era o alicerce do nosso futuro. Agora, nem isso tínhamos.
Naquela noite, não dormi. O Rui resmungava baixinho ao meu lado:
— Isto é típico da tua mãe. Sempre a esconder as coisas até ao último segundo…
— Não digas isso — respondi, mas no fundo sabia que ele tinha razão.
No dia seguinte, fui falar com o meu pai. Ele estava sentado na varanda, a fumar um cigarro — coisa rara nele.
— Pai… é verdade? Vocês vão mesmo separar-se?
Ele olhou para mim com olhos vermelhos e cansados. — A tua mãe já decidiu há muito tempo, filha. Eu só fui ficando… por ti e pelo teu irmão.
— E a casa?
— Vai ser vendida. Não há outra solução.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — Então prometeram-nos uma coisa que sabiam que não podiam cumprir?
Ele encolheu os ombros. — Às vezes prometemos para acreditar que ainda temos algum controlo sobre a vida.
Voltei para casa dos meus sogros, onde estávamos provisoriamente. O Rui estava furioso:
— Isto é uma falta de respeito! Como é que vamos começar a nossa vida assim? Achas que eles pensaram em nós?
Eu não sabia responder. Senti-me traída pelos meus próprios pais. O meu irmão mais novo, o Miguel, ligou-me nessa noite:
— Mana… Sabes que eu vou ter de ir viver com o pai para um T1 alugado? A mãe vai para casa da avó até arranjar trabalho…
De repente percebi que todos estávamos à deriva. Não era só eu e o Rui sem casa; era toda a família desfeita.
As semanas seguintes foram um inferno de papéis, advogados e discussões sobre móveis e contas antigas. A minha mãe chorava ao telefone comigo:
— Desculpa, filha… Eu só queria que fosses feliz no teu casamento antes de tudo isto rebentar.
Mas eu já não sabia o que sentir: raiva por me terem escondido tudo ou pena por ver os meus pais tão perdidos quanto eu.
O Rui começou a afastar-se. Passava mais tempo no trabalho e menos comigo. Uma noite discutimos feio:
— Achas que isto é fácil para mim? — gritei-lhe. — Perdi tudo! Até a confiança nos meus pais!
Ele respondeu seco: — E eu? Também perdi! Agora estamos os dois sem chão!
A tensão entre nós crescia todos os dias. Os sogros tentavam ajudar, mas sentia-me uma intrusa naquela casa cheia de regras e silêncios desconfortáveis.
Um domingo à tarde, sentei-me sozinha no jardim dos sogros e chorei como há muito não chorava. Lembrei-me da infância naquela casa antiga dos meus pais: os Natais cheios de risos, as tardes de verão no quintal com o Miguel a correr atrás do cão… Como é que tudo se tinha desfeito assim?
A minha mãe ligou-me nesse momento:
— Filha… Preciso de te pedir perdão outra vez. Sei que te magoei.
— Mãe… Eu só queria que tivesses sido honesta desde o início.
Ela suspirou: — Tive medo de te perder também.
Percebi então que todos tínhamos medo: medo de perder a família, medo do futuro, medo de sermos egoístas demais ou generosos demais.
O divórcio avançou rápido. A casa foi vendida por menos do que valia porque ninguém conseguia suportar as visitas dos compradores e as perguntas indiscretas dos vizinhos.
O dinheiro foi dividido e cada um seguiu o seu caminho: o meu pai para um apartamento pequeno em Almada; a minha mãe para casa da avó em Setúbal; o Miguel ficou dividido entre os dois.
Eu e o Rui alugámos um T2 modesto em Lisboa. Não era o começo de sonho que imaginámos, mas era o possível.
Durante meses evitei festas de família e reuniões com amigos. Sentia vergonha da minha história — como se tivesse falhado antes mesmo de começar.
Um dia, ao arrumar caixas ainda fechadas do casamento, encontrei uma carta antiga da minha mãe para o meu pai. Falava de amor, de esperança e de promessas para sempre.
Chorei outra vez. Percebi que nem sempre as promessas são feitas para serem quebradas; às vezes são feitas porque precisamos acreditar nelas enquanto duram.
Hoje olho para trás e vejo uma família partida mas viva; vejo-me mais forte do que pensava ser possível.
Pergunto-me: quantos de nós vivem agarrados a promessas impossíveis? E será que conseguimos perdoar quem nos falha quando só queria proteger-nos?