A casa onde as calças são proibidas – Entre regras, segredos e a coragem de ser eu mesma
— Não vais entrar com essas calças, pois não, Mariana? — A voz da Dona Zélia cortou o ar antes mesmo de eu conseguir pousar a mala no chão do corredor. O cheiro a canja e a roupa acabada de passar misturava-se com a tensão que pairava no ar. Olhei para o Miguel, meu namorado, à procura de algum sinal de que aquilo era uma brincadeira. Mas ele apenas desviou o olhar, envergonhado.
— Desculpe, Dona Zélia, não percebi… — tentei sorrir, mas a minha voz saiu trémula.
— Aqui em casa, as mulheres não usam calças. Só fato de treino ou pijama. É tradição — disse ela, com um tom que não admitia discussão.
O meu coração bateu mais depressa. Tinha ouvido histórias sobre famílias tradicionais, mas nunca pensei que fosse sentir na pele uma regra tão absurda. Senti-me ridícula, ali, de jeans, como se estivesse a desafiar uma lei sagrada. O Miguel aproximou-se e sussurrou:
— Desculpa, amor. Devia ter-te avisado…
A vergonha e a raiva misturaram-se dentro de mim. Porquê? Porquê esta regra? E porquê agora, quando tudo o que eu queria era ser bem recebida?
A Dona Zélia levou-me ao quarto de hóspedes, onde já tinha preparado um pijama cor-de-rosa, demasiado pequeno para mim. — Veste isto. O jantar está quase pronto. — Saiu, fechando a porta com força.
Sentei-me na cama, a olhar para o pijama. Senti-me uma criança, obrigada a obedecer sem questionar. Mas eu não era uma criança. E não estava ali para ser moldada à imagem de ninguém.
No jantar, o ambiente era pesado. O pai do Miguel, o senhor António, mal falou. A irmã dele, a Joana, parecia divertir-se com o meu desconforto. — Mariana, ficas tão querida de pijama! — disse, com um sorriso trocista.
Tentei ignorar. Mas cada palavra, cada olhar, era um lembrete de que eu não pertencia àquele mundo. Quando a Dona Zélia começou a falar sobre o valor das tradições e como as mulheres modernas estavam a perder o respeito, senti uma raiva a crescer dentro de mim.
— Não acha que cada pessoa devia poder escolher o que veste? — perguntei, tentando manter a calma.
Ela olhou-me como se eu tivesse dito uma blasfémia. — Aqui em casa, as regras são para cumprir. Se não gostas, podes ir embora.
O Miguel tentou intervir, mas ela calou-o com um olhar. Senti-me sozinha, exposta. Mas não podia desistir.
Naquela noite, não consegui dormir. Ouvia os passos no corredor, as vozes baixas na sala. Senti-me uma intrusa, mas também uma prisioneira. Pensei em ir embora, mas algo me prendeu ali: a vontade de não ser derrotada por uma tradição sem sentido.
No dia seguinte, decidi enfrentar a Dona Zélia. Esperei que todos estivessem na cozinha e entrei de calças de ganga, cabeça erguida.
— Mariana! — gritou ela. — Já te disse que aqui não se usam calças!
— Com todo o respeito, Dona Zélia, eu sou adulta. E não vou deixar de ser quem sou para agradar a ninguém. Se isso significa que não sou bem-vinda, então vou embora.
O silêncio foi absoluto. O senhor António levantou-se devagar e saiu da sala. A Joana ficou boquiaberta. O Miguel olhou para mim com uma mistura de orgulho e medo.
— Achas-te melhor do que nós? — perguntou a Dona Zélia, com lágrimas nos olhos. — Achas que as nossas tradições não valem nada?
— Não é isso. Mas acho que as tradições não podem servir para nos prender ou humilhar. Eu amo o Miguel, mas não posso fingir ser outra pessoa.
Ela ficou calada durante uns segundos eternos. Depois, levantou-se e saiu da cozinha.
O Miguel veio ter comigo. — Nunca ninguém lhe respondeu assim…
— Não quero ser mais uma peça deste teatro — disse-lhe, sentindo as lágrimas a quererem sair.
Passámos o resto do dia em silêncio. À noite, ouvi a Dona Zélia a chorar no quarto. Senti pena dela, mas também senti pena de mim mesma, por ter de escolher entre o amor e a minha identidade.
No domingo de manhã, preparei as minhas coisas para ir embora. O Miguel insistiu para ficarmos juntos, mas eu sabia que algo tinha mudado para sempre.
Antes de sair, a Dona Zélia apareceu à porta do quarto.
— Mariana… — disse ela, com voz cansada. — Talvez tenhas razão. Talvez eu tenha medo de perder aquilo que conheço. Mas custa-me ver as coisas a mudar tão depressa.
Olhei para ela, sem saber o que dizer. Pela primeira vez, vi nela uma mulher assustada, não uma tirana.
— Eu também tenho medo — confessei. — Mas não podemos viver sempre com medo.
Ela assentiu, em silêncio.
Saí daquela casa com o coração apertado, mas orgulhosa de mim mesma. O Miguel veio comigo até ao carro.
— Desculpa por tudo…
— Não tens de pedir desculpa por seres quem és — respondi-lhe.
Enquanto conduzia de volta a Lisboa, perguntei-me: quantas vezes nos deixamos moldar por regras que não fazem sentido? Quantas vezes sacrificamos quem somos para caber num mundo que não é o nosso? Será que vale mesmo a pena?