A Casa na Encruzilhada: Entre o Passado e o Futuro
— Não vou assinar, Mariana! Não vou! — gritou a minha irmã, Inês, com os olhos marejados de raiva e mágoa. O eco da sua voz ressoou nas paredes da sala, agora vazia de móveis mas cheia de fantasmas. Eu estava sentada no velho sofá, aquele mesmo onde o nosso pai se sentava para ver o Telejornal, e senti o peso de todas as decisões que nunca quis tomar.
O testamento do nosso pai era claro: a casa ficava para nós as duas. Mas depois da morte da mãe, tudo se tornou mais complicado. Inês queria vender. Dizia que precisava do dinheiro para pagar as dívidas do marido, para dar uma vida melhor aos filhos. Eu queria ficar. Não era só teimosia — era medo de perder o último pedaço de chão onde ainda me sentia filha.
— Inês, ouve-me… — tentei falar baixo, mas a voz saiu-me trémula. — Se vendermos isto, vendemos tudo o que fomos. Onde é que vamos pôr as fotografias? Onde é que vou sentir o cheiro do café da mãe?
Ela virou-me as costas, os ombros tensos como se carregasse o mundo inteiro. — O cheiro do café não paga as contas, Mariana! E tu sabes tão bem como eu que esta casa só nos trouxe discussões desde que a mãe morreu.
Tinha razão. Desde o funeral, só nos víamos para discutir papéis, contas, dívidas antigas. A casa estava a apodrecer aos poucos: infiltrações no tecto, azulejos partidos na cozinha, o jardim tomado pelas silvas. Mas cada canto tinha uma história. Lembrei-me do Natal em que fizemos um presépio com musgo apanhado no quintal, do dia em que a mãe caiu das escadas e ficou a rir-se da própria trapalhice.
— Lembras-te quando a mãe fazia arroz-doce e dizia que era segredo de família? — perguntei, quase num sussurro.
Inês não respondeu logo. Ficou ali parada, a olhar pela janela para a rua deserta da aldeia. — Lembro. Mas agora já ninguém faz arroz-doce aqui.
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Senti uma raiva surda crescer-me no peito. Porque é que tinha de ser tudo tão difícil? Porque é que não conseguíamos ser como aquelas famílias dos filmes, que se abraçam no fim das discussões?
O telemóvel dela tocou. Era o João, o marido. Ouvi-a dizer “Sim, já vou… Não, ainda não resolvemos… Sim, eu sei que precisamos…”. Quando desligou, olhou-me com olhos cansados.
— Mariana, eu não tenho escolha. O João está desempregado há meses. Os miúdos precisam de sapatos novos para a escola. Eu não posso viver de memórias.
Senti-me egoísta. Eu era solteira, sem filhos, com um emprego estável numa escola em Lisboa. Podia dar-me ao luxo de querer guardar o passado. Mas ela não podia.
— E se eu te desse a minha parte? — perguntei de repente.
Ela olhou-me como se eu tivesse enlouquecido. — Vais ficar sem nada?
— Fico com as memórias — respondi, tentando sorrir.
Mas sabia que não era assim tão simples. A casa era metade minha por direito. E se um dia precisasse? E se me arrependesse?
Naquela noite dormi na casa vazia. Ouvia os barulhos antigos: o vento nas portadas, os passos imaginários dos meus pais no corredor. Sonhei com a infância: eu e Inês a correr pelo quintal, a mãe a chamar-nos para jantar, o pai a ler-nos histórias antes de dormir.
De manhã acordei com uma decisão presa na garganta. Fui até ao quarto onde dormíamos em pequenas camas de ferro e sentei-me no chão frio.
— Inês — disse-lhe quando chegou —, vamos vender. Mas quero escolher quem compra.
Ela franziu o sobrolho. — Como assim?
— Não quero que isto vá parar às mãos de alguém que vai deitar tudo abaixo para construir apartamentos feios. Quero alguém que goste desta casa como nós gostámos.
Ela sorriu pela primeira vez em meses. — Achas mesmo que isso é possível?
— Não sei — respondi — mas quero tentar.
Durante semanas pusemos anúncios em jornais locais, falámos com vizinhos, procurámos alguém que visse valor naquelas paredes gastas pelo tempo. Vieram muitos: um casal jovem à procura de sossego; um senhor reformado que queria plantar uma horta; até um artista que sonhava transformar a casa num ateliê.
Cada visita era uma ferida aberta e um bálsamo ao mesmo tempo. Mostrávamos os cantos secretos: o sótão onde escondíamos brinquedos proibidos, o poço onde quase caímos uma vez, a figueira onde subíamos para fugir dos sermões da mãe.
No fim foi a Dona Amélia quem ficou com a casa. Uma senhora viúva da aldeia vizinha, com mãos calejadas e olhos gentis. Disse-nos: “Esta casa tem alma. Prometo cuidar dela como cuidaram.” Inês chorou abraçada a mim quando assinámos os papéis.
No dia da mudança levei comigo uma caixa pequena: fotografias antigas, um caderno de receitas da mãe, uma pedra do jardim onde brincávamos descalças. Inês levou apenas um ramo de alfazema seca do quintal.
Quando fechámos a porta pela última vez, senti um vazio imenso e ao mesmo tempo uma leveza nova.
— Achas que fizemos bem? — perguntou Inês.
Olhei para trás uma última vez e respondi:
— Não sei se existe “bem” ou “mal” nestas coisas. Só sei que precisamos de seguir em frente.
Agora escrevo esta história sentada no meu pequeno apartamento em Lisboa, com o cheiro da alfazema ao meu lado e as memórias guardadas numa caixa de sapatos. Pergunto-me muitas vezes: será que um lar é feito de paredes ou das pessoas que amamos? E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre o passado e o futuro?