A Casa dos Sonhos e o Coração Partido: Um Relato de Lisboa
— Não foi para isto que eu lutei, Teresa! — gritei, sentindo a voz embargar-se de raiva e tristeza. O eco das minhas palavras perdeu-se nas paredes brancas da sala, ainda cheirando a tinta fresca. Ela olhou para mim, olhos vermelhos, mãos trémulas segurando a chávena de chá que já não bebia.
O relógio marcava quase meia-noite. Lá fora, Lisboa dormia, indiferente ao caos que reinava dentro da nossa nova casa. A casa dos sonhos, diziam todos. A casa que eu e Teresa planeámos durante anos, desenhando cada canto, escolhendo cada azulejo, cada janela com vista para o Tejo. Mas agora, sentados frente a frente na cozinha fria, parecia que tínhamos construído um mausoléu para o nosso casamento.
— Eu só queria paz, Miguel — murmurou ela, desviando o olhar. — Só queria que estivéssemos juntos, felizes…
Paz. Era tudo o que eu também queria, mas parecia impossível desde aquela noite em que o meu irmão Rui apareceu à porta, bêbado, pedindo dinheiro outra vez. Teresa nunca gostou dele. Dizia que ele era um peso morto, um poço sem fundo de problemas. Eu sempre defendi o Rui — afinal, éramos irmãos. Mas naquela noite, quando ele partiu um vaso da minha mãe e insultou Teresa, algo se partiu entre nós.
— Não quero mais discussões por causa do teu irmão — disse ela, voz firme agora. — Ou ele ou eu.
A escolha parecia impossível. Rui era sangue do meu sangue; Teresa era o amor da minha vida. Mas como escolher entre dois pedaços de mim?
Os dias seguintes foram um desfile de silêncios e olhares frios. A casa nova encheu-se de caixas por abrir e promessas por cumprir. Os meus pais vinham visitar-nos aos domingos, fingindo não notar as tensões. A minha mãe trazia bolos e conselhos não pedidos: “Miguel, tens de ser homem da casa.” O meu pai limitava-se a olhar pela janela, como se procurasse uma saída.
No trabalho, os colegas perguntavam-me pela casa nova. “Deve ser um sonho viver ali!”, diziam com inveja disfarçada. Eu sorria e mudava de assunto. Ninguém sabia das noites em claro, das discussões abafadas pelo som do trânsito na marginal.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro — sempre o maldito dinheiro — Teresa atirou:
— Se calhar nunca devíamos ter comprado esta casa! Se calhar devíamos ter ficado no nosso apartamento pequenino em Benfica!
Fiquei sem palavras. Tínhamos lutado tanto para chegar ali… Para quê? Para nos perdermos um ao outro?
O Rui continuava a ligar-me, cada vez mais desesperado. “Miguel, só preciso de mais uma ajuda”, dizia ele. Mas eu já não tinha forças para o salvar — nem a ele, nem ao nosso casamento.
Foi numa tarde chuvosa de novembro que tudo mudou. Cheguei a casa mais cedo e encontrei Teresa a arrumar malas.
— Vais sair? — perguntei, sentindo o chão fugir-me dos pés.
Ela não respondeu de imediato. Olhou-me com uma tristeza antiga, como se já tivesse chorado tudo o que havia para chorar.
— Preciso de espaço, Miguel. Preciso de me encontrar outra vez.
Tentei agarrá-la pelo braço, implorei-lhe que ficasse. Prometi mudar tudo: menos trabalho, menos Rui, mais nós dois. Mas ela já não acreditava em promessas.
— Não é só por ti ou pelo Rui — disse ela baixinho. — É por mim. Perdi-me nesta casa enorme onde já não me reconheço.
Vi-a sair com duas malas e um casaco velho. Fiquei ali parado na porta, sentindo-me mais sozinho do que nunca.
Os dias seguintes foram um borrão de rotinas vazias: trabalho-casa-trabalho. O Rui deixou de ligar; soube mais tarde que tinha sido internado depois de uma overdose. Os meus pais vieram buscar as últimas caixas da Teresa sem fazer perguntas.
A casa ficou grande demais para mim. Cada divisão era um lembrete do que perdi: o quarto onde planeávamos ter filhos; a varanda onde sonhámos ver os netos a brincar; a cozinha onde ela fazia arroz doce aos domingos.
Comecei a evitar os amigos. Não queria ouvir perguntas nem conselhos bem-intencionados. Passei a jantar sozinho na sala enorme, com a televisão ligada só para ouvir vozes humanas.
Uma noite, sentei-me no chão da sala e chorei como não chorava desde criança. Chorei pelo Rui, pela Teresa, por mim mesmo e por todos os sonhos que ficaram por cumprir.
O tempo passou devagar. Aprendi a viver sozinho naquela casa cheia de ecos. Comecei a reparar em coisas pequenas: o cheiro do café pela manhã; o sol a entrar pela janela da sala; o silêncio confortável das noites sem discussões.
Um dia, encontrei uma carta da Teresa numa gaveta do quarto. Era curta:
“Desculpa por não ter conseguido ser feliz aqui contigo. Espero que um dia encontres paz nesta casa — ou noutro lugar qualquer.”
Li aquelas palavras vezes sem conta. Perguntei-me onde tinha falhado; se podia ter feito algo diferente; se algum dia voltaria a sentir-me em casa.
Hoje olho para esta casa e vejo nela tudo o que perdi e tudo o que ainda posso construir — sozinho ou com alguém novo. Pergunto-me muitas vezes: será que um lar é feito de paredes ou de pessoas? E vocês? O que acham que faz uma casa ser realmente um lar?