A Casa da Avó Era Nossa, Mas o Destino Continuava nas Mãos da Mãe

— Vocês acham mesmo que podem fazer o que vos apetece só porque a casa agora está em vosso nome? — A voz da minha mãe ecoou pela sala, cortando o silêncio como uma faca afiada. Eu estava de pé junto à janela, as mãos trémulas a apertar o papel do notário. A minha irmã Naíde, sentada no sofá, olhava para o chão, os olhos marejados de lágrimas que se recusava a deixar cair.

A casa da avó era tudo para nós. Crescemos ali, entre os cheiros do pão quente e as histórias sussurradas ao serão. Quando ela morreu, deixou-nos a casa — a mim e à Naíde — talvez como último gesto de proteção contra o temperamento imprevisível da nossa mãe. Mas a verdade é que nada mudou. A mãe continuava a entrar e sair quando queria, a decidir quem podia visitar-nos, a controlar até o que cozinhávamos ao jantar.

— Não é justo, mãe — arrisquei, tentando manter a voz firme. — A avó quis que esta casa fosse nossa. Tu tens o teu apartamento em Lisboa, não precisas de estar sempre aqui.

Ela riu-se, um riso seco e amargo. — Vocês não sabem nada da vida. Acham que uma escritura vos faz donas de alguma coisa? Enquanto eu for viva, esta casa é minha. E se não gostarem, podem ir-se embora.

Naíde levantou-se de rompante. — Não tens esse direito! — gritou, finalmente deixando escapar as lágrimas. — Passámos anos a viver com medo das tuas birras, das tuas ameaças… Agora basta!

O silêncio caiu pesado. Senti o coração bater descompassado. Sabia que estávamos a atravessar uma linha perigosa. A mãe olhou-nos com um desprezo frio e saiu, batendo a porta com força.

Durante dias, vivemos num limbo. Cada vez que ouvíamos passos no corredor ou um carro a parar à porta, os nossos corpos enrijeciam de medo. A mãe aparecia sem avisar, revistava gavetas, criticava tudo: “Esta sala está uma vergonha!”, “A vossa avó deve estar a dar voltas no caixão!”. Até os vizinhos começaram a comentar: “A vossa mãe não vos larga…”.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as cortinas da sala — sim, as cortinas! — sentei-me com Naíde na cozinha. O cheiro do café misturava-se com o sal das nossas lágrimas.

— Não aguento mais — sussurrou ela. — Isto não é viver.

— E se mudássemos as fechaduras? — perguntei, quase sem acreditar no que dizia.

Naíde olhou para mim como se eu tivesse sugerido um crime. Mas depois vi nos olhos dela um brilho de esperança misturado com medo.

No dia seguinte, chamei um serralheiro. O homem olhou para mim com desconfiança quando expliquei o motivo.

— Tem a certeza? — perguntou ele baixinho. — Sabe que isto pode dar problemas…

Assenti em silêncio. Quando ouvi o clique final da nova fechadura, senti um peso sair-me dos ombros — mas também um medo novo instalar-se no peito.

A mãe apareceu dois dias depois. Tentou abrir a porta com a sua chave antiga e não conseguiu. Bateu com força, gritou o nosso nome. Ouvimos tudo do outro lado da porta, paralisadas pelo terror e pela culpa.

— Abram! Abram já esta porta! Isto é uma vergonha! Vocês são umas ingratas! — gritava ela.

Não abrimos. Ficámos ali sentadas no chão do corredor, abraçadas uma à outra enquanto ela continuava a bater e a insultar-nos.

Depois desse dia, tudo mudou. A mãe deixou de aparecer durante semanas. O silêncio era estranho, quase doloroso. Sentíamos falta até das discussões — ou talvez fosse só o medo do desconhecido.

Mas a paz foi curta. Um dia recebemos uma carta registada: a mãe estava a processar-nos por “usurpação de propriedade”. Alegava que tinha direito à casa por ter cuidado da avó nos últimos anos (o que não era verdade). O processo arrastou-se durante meses. Fomos chamadas ao tribunal de família em Santarém.

No tribunal, vi a mãe sentada do outro lado da sala, fria como pedra. O juiz perguntou-lhe porque fazia aquilo às filhas.

— Porque elas não sabem o que é respeito — respondeu ela sem hesitar. — Sempre dei tudo por elas e agora querem tirar-me tudo.

O juiz olhou para nós com compaixão. Perguntou-nos se queríamos tentar uma mediação familiar.

Naíde recusou imediatamente:

— Não há mediação possível com alguém que só quer controlar-nos.

Saímos do tribunal de mãos dadas, mas sentindo-nos mais sozinhas do que nunca.

Os meses seguintes foram um inferno: telefonemas anónimos durante a noite, vizinhos que nos viravam a cara, familiares distantes que nos acusavam de ingratidão. Eu perdi o emprego porque não conseguia concentrar-me; Naíde começou a ter ataques de ansiedade.

Uma noite encontrei-a sentada na varanda, os olhos fixos no escuro:

— Achas que algum dia vamos ser felizes aqui? Ou esta casa vai ser sempre uma prisão?

Não soube responder-lhe.

O processo acabou por ser arquivado por falta de provas e porque a escritura estava clara: éramos as legítimas herdeiras. Mas nada voltou ao normal. A mãe nunca mais nos falou; no Natal mandou-nos uma mensagem seca: “Espero que estejam contentes com o que fizeram”.

A casa ficou fria, vazia de memórias felizes. Tentámos pintar as paredes, mudar os móveis… mas parecia impossível apagar as marcas do passado.

Às vezes dou por mim a pensar se fizemos bem em lutar por esta casa. Se valeu a pena perder a mãe para ganhar quatro paredes e um teto cheio de fantasmas.

E vocês? O que fariam no nosso lugar? Até onde iriam para conquistar a vossa liberdade?