A Caixa Que Nunca Abrimos: Segredos Entre Silêncios
— Vais mesmo continuar a fingir que está tudo bem, Sofia? — A voz do Diogo ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado da noite. O som dos talheres que eu lavava caiu no lava-loiça, estrondoso demais para o momento. Senti o coração apertar-se, como se cada palavra dele fosse uma faca a rasgar o pouco que restava entre nós.
Olhei para ele, parado à porta, com os olhos cansados e as mãos nos bolsos. O Diogo já não era o rapaz que conheci na faculdade, cheio de sonhos e piadas fáceis. Agora, era um homem marcado pelo tempo, pelas contas por pagar e pelas noites mal dormidas com a nossa filha, Matilde.
— Não estou a fingir nada — respondi, tentando manter a voz firme. Mas até eu sabia que era mentira. Havia meses que só falávamos do essencial: quem vai buscar a Matilde à escola, quem faz o jantar, quem paga a luz este mês. Tudo o resto era silêncio.
Olhámos um para o outro durante segundos que pareceram horas. E foi então que reparei nela: a caixa. Estava ali, em cima do armário da sala, coberta de pó. A caixa que a tia Lurdes nos deu no casamento, com um laço vermelho e um bilhete: “Abram-na quando tiverem a vossa primeira grande discussão.”
Durante anos, rimo-nos da ideia. “Nós? Discutir? Nunca!” Mas agora, dez anos depois, aquela caixa parecia um fantasma entre nós.
— Lembras-te da caixa? — perguntei, apontando com o queixo.
O Diogo suspirou. — Lembro. E lembro-me do que prometemos: só abrir quando fosse mesmo preciso.
— Achas que já não é preciso? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
Ele não respondeu. Aproximou-se devagar e pegou na caixa com mãos trémulas. Sentámo-nos à mesa, frente a frente, como dois estranhos prestes a negociar um tratado de paz.
— Queres abrir tu? — perguntou ele.
Assenti. As minhas mãos tremiam tanto que mal consegui desfazer o laço. Dentro da caixa havia duas cartas, uma garrafa pequena de vinho do Porto e dois copos de vidro. Peguei numa das cartas e li em voz alta:
“Queridos Sofia e Diogo,
Se chegaram até aqui é porque o amor foi posto à prova. Lembrem-se do que vos uniu. Façam uma pausa, partilhem um copo de vinho e leiam as palavras que escreveram um ao outro antes do casamento.”
Olhei para o Diogo, confusa. Ele pegou na segunda carta. Era a minha letra.
“Diogo,
Se estás a ler isto é porque algo correu mal. Quero lembrar-te de como me fazias rir quando tudo parecia difícil. Quero pedir-te para nunca deixares de falar comigo, mesmo quando for mais fácil ficar calado.”
As lágrimas caíram-me pelo rosto sem pedir licença. O Diogo leu a carta dele para mim:
“Sofia,
Se algum dia te magoei, peço desculpa agora mesmo. Prometo tentar sempre perceber-te, mesmo quando não disseres nada. Amo-te.”
Ficámos ali sentados em silêncio, com as cartas nas mãos e o peso de dez anos entre nós. O vinho ficou por abrir.
— Quando foi que deixámos de falar? — perguntei baixinho.
O Diogo passou as mãos pelo cabelo, frustrado.
— Não sei… Talvez quando começámos a preocupar-nos mais com as contas do que connosco. Ou quando a Matilde nasceu e tudo girava à volta dela…
— Ou quando perdeste o emprego e eu não soube como ajudar — acrescentei.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos.
— Senti-me um fracasso. E tu… tu parecias tão distante.
— Eu estava assustada — confessei. — Achei que se fingisse que estava tudo bem, talvez passasse.
O silêncio voltou, mas desta vez era diferente. Era um silêncio cheio de coisas por dizer.
— Achas que ainda conseguimos voltar atrás? — perguntei.
O Diogo pegou na minha mão pela primeira vez em meses.
— Não sei se conseguimos voltar atrás… mas podemos tentar seguir em frente juntos.
Nesse momento ouvimos passos pequeninos no corredor. A Matilde apareceu à porta da cozinha com o cabelo despenteado e os olhos meio fechados.
— Mãe… pai… estão a chorar?
Sorri-lhe através das lágrimas.
— Estamos só a lembrar-nos de coisas bonitas, filha.
Ela correu para o nosso colo e abraçou-nos aos dois ao mesmo tempo. Senti o calor dela unir-nos por instantes.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que ficou por dizer durante anos: as mágoas pequenas que se transformaram em muralhas; os sonhos adiados; as noites em que me virei para o lado oposto na cama porque era mais fácil do que enfrentar o vazio entre nós.
No dia seguinte, preparei pequeno-almoço para os três. O Diogo apareceu na cozinha com um sorriso tímido e ajudou-me a pôr a mesa. A Matilde falava sem parar sobre um desenho novo que tinha feito na escola.
Depois do pequeno-almoço, fui até à varanda apanhar ar. O Diogo veio atrás de mim.
— Sofia… desculpa por tudo — disse ele baixinho.
— Eu também te peço desculpa — respondi. — Não quero continuar assim.
Ele abraçou-me por trás e ficámos ali calados, mas desta vez era um silêncio bom.
Durante as semanas seguintes tentámos conversar mais: sobre nós, sobre os nossos medos, sobre aquilo que queríamos mudar. Fomos juntos buscar a Matilde à escola; fizemos planos para uma escapadinha só os dois; rimos das nossas próprias trapalhadas como nos velhos tempos.
Mas nem tudo foi fácil. Houve discussões novas — sobre dinheiro, sobre trabalho, sobre os sogros intrometidos (a minha mãe nunca gostou muito do Diogo e fazia questão de mostrar isso sempre que podia). Houve dias em que pensei em desistir; noites em que chorei sozinha na casa de banho para não acordar ninguém.
Uma noite, depois de uma discussão feia por causa das férias (ele queria ir ao Gerês acampar; eu queria ir ao Algarve descansar), sentei-me no chão da sala com a caixa aberta ao meu lado e perguntei-me se valia mesmo a pena tanto esforço.
Lembrei-me das cartas. Das promessas feitas antes de sabermos o quão difícil seria cumprir cada palavra escrita num papel amarelecido pelo tempo.
No dia seguinte, sentei-me com o Diogo à mesa da cozinha e disse-lhe tudo: os meus medos, as minhas dúvidas, até as coisas feias que nunca tive coragem de dizer em voz alta.
Ele ouviu-me sem interromper. No fim, pegou na minha mão outra vez e disse:
— Não sei se algum dia vamos ser perfeitos… mas quero tentar todos os dias contigo.
Abracei-o com força e percebi que talvez fosse isso o amor: não era ausência de conflitos ou silêncios, mas sim ter coragem de os enfrentar juntos.
Hoje olho para trás e vejo quantas vezes deixámos passar oportunidades de falar; quantas vezes preferimos o silêncio ao confronto; quantas vezes nos perdemos um do outro sem sequer percebermos.
E pergunto-me: quantos casais terão caixas fechadas em casa — reais ou imaginárias — cheias de palavras por dizer? Quantos de nós temos medo de abrir essas caixas?
Será que vale mais guardar o silêncio ou arriscar tudo numa conversa difícil? E vocês… já abriram as vossas caixas?