A Beleza Que Ninguém Vê: O Que Ficou Por Dizer

— Não percebes mesmo nada, pois não, Miguel? — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu tentava, em vão, encontrar as palavras certas para responder. O cheiro do arroz de pato queimado misturava-se com a tensão no ar. — Sempre foste assim, a viver no teu mundo! — continuou ela, batendo com força uma colher de pau na bancada.

Eu queria dizer-lhe que não era bem assim, que eu via tudo, sentia tudo. Mas como explicar à minha mãe, à minha irmã, à minha família inteira, que o que eu procurava não era o que todos esperavam de mim? Desde pequeno, ouvi dizer que um homem devia escolher uma mulher bonita, bem-apresentada, alguém que desse orgulho à família. Mas eu sempre quis mais do que isso. Queria alguém que me visse, que me entendesse para além do sorriso e da maquilhagem.

A primeira vez que me apaixonei foi por Inês. Tinha 17 anos e ela era a rapariga mais discreta da turma. Usava óculos grossos e roupas largas, mas tinha um sorriso tímido que me fazia esquecer o resto do mundo. Lembro-me de um dia, no recreio, ela ter deixado cair os livros e eu ajudei-a a apanhar. Os nossos olhos cruzaram-se e senti algo diferente. Mas os meus amigos riram-se de mim durante semanas. — Vais mesmo atrás daquela? — perguntava o João, com aquele ar trocista. — Podes ter qualquer uma! —

Acabei por ceder à pressão. Afastei-me da Inês e comecei a sair com a Patrícia, a rapariga mais popular da escola. Era bonita, sim, mas nunca me senti realmente visto por ela. As conversas eram superficiais e os silêncios pesados. No fundo, sentia-me sozinho ao lado dela.

Os anos passaram e fui repetindo o mesmo erro. Sempre à procura de aprovação dos outros, sempre a escolher com os olhos dos outros. Quando entrei na faculdade em Coimbra, conheci a Sofia. Era tudo o que a minha mãe queria: elegante, educada, filha de um médico conhecido na cidade. No início, parecia perfeito. Os meus pais orgulhavam-se de mim nas festas de família. — O nosso Miguel sabe escolher! — diziam eles.

Mas havia algo em Sofia que me deixava inquieto. Ela era perfeita demais, como se estivesse sempre a representar um papel. Um dia, depois de um jantar em casa dos meus pais, ouvi-a ao telefone na varanda:

— Claro que sim, mãe! O Miguel é um bom partido. E os pais dele são impecáveis… Não te preocupes, eu sei o que estou a fazer.

Aquelas palavras ficaram-me atravessadas na garganta. Senti-me usado, como se fosse apenas mais um troféu para ela mostrar à família.

O tempo passou e o casamento foi-se aproximando. A pressão aumentava: listas de convidados intermináveis, discussões sobre o vestido, sobre o catering… E eu cada vez mais distante de mim próprio. Uma noite, já depois da meia-noite, sentei-me no sofá da sala escura e chorei em silêncio. O meu pai entrou sem fazer barulho e sentou-se ao meu lado.

— Sabes, filho… — começou ele com voz baixa — …a tua mãe também quis casar comigo porque parecia certo para toda a gente. Mas só depois é que aprendeu a gostar de mim como eu sou.

Olhei para ele surpreendido. Nunca tinha ouvido o meu pai falar assim.

— Não faças como nós — continuou ele — Não te percas só para agradar aos outros.

No dia seguinte acordei decidido a falar com Sofia. Encontrei-a na esplanada onde costumávamos tomar café aos domingos.

— Sofia… precisamos de conversar.

Ela olhou para mim com aquele sorriso ensaiado.

— O que se passa agora?

— Sinto que estamos a viver uma mentira — disse-lhe com voz trémula — Sinto que não me conheces realmente… e eu também não te conheço a ti.

Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos.

— Achas mesmo que alguém se conhece verdadeiramente? — respondeu ela finalmente — Toda a gente finge um bocadinho… É assim que as coisas funcionam.

Fiquei sem palavras. Levantei-me e fui embora sem olhar para trás.

Os meses seguintes foram duros. A minha mãe ficou furiosa comigo por ter cancelado o casamento. A minha irmã deixou de me falar durante semanas. No trabalho, os colegas cochichavam nas minhas costas: “O Miguel enlouqueceu… deixou uma mulher perfeita!”.

Senti-me mais sozinho do que nunca. Mas pela primeira vez estava a ser honesto comigo próprio.

Foi nessa altura que reencontrei Inês numa livraria do centro da cidade. Estava diferente: mais confiante, mas com o mesmo sorriso tímido de sempre.

— Olá Miguel… há quanto tempo! — disse ela com surpresa genuína.

Conversámos durante horas sobre livros, música e sonhos adiados. Senti-me visto outra vez.

Começámos a sair juntos e percebi finalmente o valor da beleza interior. Inês não precisava de fingir ser outra pessoa para agradar a ninguém. Era autêntica nas suas fragilidades e nas suas forças.

Claro que nem tudo foi fácil. A minha família demorou a aceitar Inês. A minha mãe fazia comentários passivo-agressivos nos jantares: “Tens a certeza que é isto que queres para ti?” ou “Ela não se arranja muito…”.

Mas desta vez não cedi à pressão. Defendi Inês com unhas e dentes.

Um dia, depois de mais uma discussão acesa com a minha mãe, sentei-me no quarto e escrevi-lhe uma carta:

“Mãe,

Passei anos a tentar ser aquilo que esperavas de mim. Mas hoje percebo que só posso ser feliz se for verdadeiro comigo próprio e com quem amo. A beleza que tu vês não é a mesma que eu vejo. Espero um dia conseguires ver Inês como eu vejo: alguém com um coração enorme e uma alma bonita.

Com amor,
Miguel”

A carta mudou pouco no imediato, mas plantou uma semente.

Hoje vivo com Inês num pequeno apartamento em Aveiro. Não temos muito dinheiro nem grandes luxos, mas temos conversas honestas e silêncios confortáveis. Às vezes olho para ela enquanto lê no sofá e penso como teria sido fácil continuar a viver uma mentira só para agradar aos outros.

E pergunto-me: quantas pessoas vivem assim todos os dias? Quantos de nós sacrificam o amor verdadeiro pela aparência de felicidade?

Será que algum dia vamos aprender a ver — e valorizar — a beleza que ninguém vê?