A Batalha por Leonor e Filipe: O Meu Mundo Depois do Divórcio

— Não me vais tirar os miúdos, Joana! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de raiva, enquanto batia com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o choro abafado da Leonor no quarto ao lado. Eu tremia, mas mantive-me de pé, agarrada à bancada como se fosse a última coisa que me impedia de desabar.

Treze anos de casamento. Treze anos a acreditar que o amor podia resistir a tudo: às contas por pagar, às noites sem dormir por causa das febres do Filipe, às discussões por coisas pequenas que, aos poucos, se tornaram muralhas entre nós. Mas naquele momento, tudo se resumia a uma guerra fria e silenciosa — e agora aberta — pela guarda dos nossos filhos.

— Rui, não é uma questão de tirar ou não tirar. Eles precisam de mim. E de ti também. Mas tu sabes que eles sempre estiveram mais comigo… — tentei argumentar, mas ele interrompeu-me com um gesto brusco.

— Não venhas com histórias! Achas que vou deixar que fiques com eles só porque és mãe? Eu também sou pai! — A voz dele tremeu, e por um segundo vi o homem por quem me apaixonei: vulnerável, assustado. Mas logo voltou a erguer a muralha.

A nossa casa em Almada parecia mais pequena desde que decidimos separar-nos. Os vizinhos já cochichavam no elevador, e a minha mãe ligava todos os dias a perguntar se eu precisava de alguma coisa. “Joaninha, não te esqueças de comer”, dizia ela, como se eu ainda tivesse dez anos. Mas eu não tinha fome. Só sentia um vazio no peito e uma dor surda na cabeça.

O processo de divórcio foi um pesadelo. Advogados, papéis, audiências no tribunal de família em Lisboa. Lembro-me da primeira vez que entrei naquela sala fria, com cadeiras de plástico e cheiro a café requentado. O Rui estava do outro lado da sala, com o advogado dele — o Dr. Mário, um homem baixo e careca que me olhava como se eu fosse uma criminosa.

— A senhora Joana pretende ficar com a guarda exclusiva dos menores? — perguntou a juíza, olhando-me por cima dos óculos.

Senti as mãos suadas e o coração aos pulos.

— Eu só quero o melhor para eles… — respondi, quase num sussurro.

O Rui bufou alto. — O melhor para eles é estarem comigo também! — atirou ele.

A Leonor tinha nove anos e o Filipe sete. Ela era sensível, sempre agarrada aos meus vestidos quando era pequena; ele era mais reservado, mas tinha um sorriso que me derretia o coração. Desde que tudo começou, vi-os mudarem: Leonor começou a roer as unhas até sangrar; Filipe fechou-se ainda mais no seu mundo de legos e desenhos.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o Rui ao telefone sobre as visitas do fim de semana, sentei-me na cama da Leonor. Ela olhou para mim com os olhos grandes e molhados.

— Mãe… tu vais embora? — perguntou ela, baixinho.

Senti um nó na garganta.

— Nunca vou embora do teu coração, meu amor. Mesmo que um dia tenhas duas casas, eu vou estar sempre contigo — disse-lhe, tentando sorrir.

Ela abraçou-me com força. Senti as lágrimas dela na minha camisola.

Os dias arrastavam-se entre reuniões com advogados e tentativas falhadas de manter uma rotina normal para os miúdos. O Rui começou a chegar atrasado para as visitas; depois aparecia sem avisar, exigindo ver as crianças fora dos horários combinados. Uma vez apareceu à porta da escola primária da Leonor sem me avisar — a educadora ligou-me aflita.

— Dona Joana, está aqui o pai da Leonor… diz que veio buscá-la hoje…

Corri para lá com o coração nas mãos. Quando cheguei, vi o Rui encostado ao portão, a fumar nervosamente.

— Não podes fazer isto! — gritei-lhe baixinho, para não chamar ainda mais atenção.

Ele encolheu os ombros.

— Quero ver a minha filha quando me apetecer! Não sou criminoso!

A diretora aproximou-se e pediu-nos para resolvermos as coisas fora da escola. Senti-me humilhada. Os outros pais olhavam para nós como se fôssemos um espetáculo triste.

Em casa, comecei a perder peso. A comida sabia-me a papelão; o sono fugia-me todas as noites. A minha irmã Marta insistia para eu ir ao médico.

— Joana, tu não podes continuar assim… os miúdos precisam de ti forte! — dizia ela, apertando-me as mãos.

Mas como é que se é forte quando tudo à volta parece desmoronar?

No tribunal, os depoimentos tornaram-se cada vez mais duros. O Rui acusou-me de ser possessiva; eu acusei-o de ser ausente. O advogado dele trouxe testemunhas: um vizinho que disse ter ouvido discussões em casa; uma colega do Rui que jurou que ele era um excelente pai. Senti-me encurralada.

Uma tarde, depois de mais uma audiência exaustiva, sentei-me num banco do jardim em frente ao tribunal. Olhei para as mãos trémulas e pensei em fugir dali para sempre. Mas depois lembrei-me dos olhos da Leonor e do Filipe — e soube que tinha de continuar.

O meu pai tentou ajudar à sua maneira:

— Filha… às vezes é preciso ceder um bocadinho para não perder tudo — disse ele numa dessas noites em que fui jantar lá a casa.

Mas ceder significava abrir mão dos meus filhos? Ou da minha dignidade?

As semanas passaram e a tensão aumentou. O Rui começou a namorar uma colega do trabalho — a Susana — e levou-a ao parque onde costumávamos ir todos juntos ao domingo. A Leonor contou-me:

— A Susana comprou-me um gelado… mas eu não gostei dela — disse ela, olhando para o chão.

Senti ciúmes e raiva. Como podia ele apresentar outra mulher aos nossos filhos tão depressa? Liguei-lhe furiosa:

— Achas normal levares os miúdos contigo e com essa mulher? Eles ainda estão a sofrer!

Ele respondeu friamente:

— A minha vida não te diz respeito! Habituem-se!

No meio disto tudo, perdi o emprego no escritório onde trabalhava há anos. A empresa fechou portas; fui apanhada desprevenida. Tive de pedir ajuda à minha mãe para pagar as contas do mês seguinte. Senti-me inútil.

Uma noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me sozinha na sala escura e chorei como há muito não chorava. Lembrei-me do Rui dos primeiros anos: das viagens ao Gerês, das promessas feitas à beira-mar em Sesimbra… Onde é que nos perdemos?

A decisão do tribunal chegou numa manhã chuvosa de novembro. Fiquei sentada no banco gelado enquanto a juíza lia:

— Guarda partilhada dos menores Leonor e Filipe… residência alternada semanalmente…

O Rui sorriu vitorioso; eu senti um alívio estranho misturado com tristeza profunda. Não era o que eu queria — queria tê-los sempre comigo — mas pelo menos não os tinha perdido.

Os primeiros meses foram difíceis. As crianças choravam sempre que mudavam de casa; eu chorava quando ficava sozinha no apartamento vazio. Aprendi a viver com o silêncio e com as saudades deles nos dias em que estavam com o pai.

Aos poucos fui reconstruindo a minha vida: arranjei um novo emprego numa papelaria perto da escola deles; comecei a fazer caminhadas ao fim da tarde; voltei a pintar quadros como fazia antes de casar. A Marta arrastou-me para aulas de ioga; ri-me pela primeira vez em meses quando caí desajeitada no tapete.

Com o tempo percebi que os miúdos também estavam a adaptar-se: Leonor fez uma nova amiga na escola; Filipe começou a jogar futebol no clube local e pedia para eu ir vê-lo aos sábados.

O Rui continuava difícil — discutíamos por mensagens sobre horários e férias — mas aprendi a responder menos e respirar fundo antes de cada conversa.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que entrou no tribunal pela primeira vez: mais cansada talvez, mas também mais forte. Sei que nunca vou esquecer aquela dor — nem quero esquecer — porque foi ela que me ensinou quem sou realmente.

Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir uma família depois de tanta guerra? Ou será que aprendemos apenas a viver entre os escombros do que fomos?