A Avó Que Escolheu Poupanças em Vez de Presentes
— Outra vez, avó? — ouvi a voz da Leonor, a minha neta mais velha, ecoar pela sala enquanto eu pousava um envelope branco sobre a mesa. O olhar dela misturava desilusão e esperança, como se ainda acreditasse que, desta vez, eu trouxesse algo diferente. — Não podias ter trazido um livro, ou um jogo? — insistiu ela, cruzando os braços.
Senti o peito apertar. O envelope continha mais uma transferência para a conta-poupança dela, como fazia todos os anos nos aniversários dos meus três netos: Leonor, Tomás e Beatriz. Desde que nasceram, abri-lhes contas no banco e, em vez de brinquedos ou roupas, depositava ali o dinheiro que ia juntando com tanto sacrifício. Sempre acreditei que era o melhor presente que lhes podia dar — uma segurança para o futuro, uma almofada para os sonhos que ainda não sabiam que tinham.
Mas naquele momento, olhando para os olhos tristes da Leonor, questionei-me se não estaria a falhar como avó. O Tomás, mais novo e sempre mais direto, não hesitou:
— Os pais do Miguel deram-lhe uma bicicleta nova! — atirou ele, quase num grito. — E tu só dás papel…
A Beatriz não disse nada. Limitou-se a olhar para mim com aquele ar doce e resignado. Senti-me pequena, quase invisível.
— Filha, — tentei explicar à minha filha Marta, que assistia à cena encostada à ombreira da porta — eu só quero o melhor para eles. Não quero que lhes falte nada quando forem grandes.
Marta suspirou. — Mãe, eles são crianças. Querem brinquedos, querem memórias. O dinheiro não lhes diz nada agora.
O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado. Lembrei-me da minha infância em Vila Nova de Gaia, dos Natais em que recebia apenas uma laranja e um par de meias novas. Os meus pais ensinavam-me a valorizar cada cêntimo porque sabiam o que era passar fome. Cresci com medo da pobreza e jurei a mim mesma que os meus netos nunca sentiriam essa angústia.
Mas será que estava a protegê-los ou a privá-los?
Naquela noite, deitei-me cedo mas não consegui dormir. A casa estava silenciosa, mas dentro de mim as vozes do passado e do presente discutiam sem cessar. Lembrei-me do António, o meu marido falecido há dez anos. Ele era o oposto de mim: adorava surpreender os netos com carrinhos de madeira feitos por ele próprio ou tardes inteiras no parque. Eu ficava sempre preocupada com as contas da casa e com o pouco que sobrava ao fim do mês.
No dia seguinte, fui ao café da D. Emília para espairecer. Ela percebeu logo que algo não estava bem.
— Linda, estás com um ar tão triste… Que se passa?
— Sinto que estou a perder os meus netos — confessei-lhe. — Eles não entendem porque não lhes dou presentes como as outras avós.
— Sabes, às vezes o melhor presente é mesmo estar presente — disse ela, pousando a mão sobre a minha. — O dinheiro é importante, mas não compra abraços nem gargalhadas.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a reparar nos pequenos detalhes: as mensagens por responder no telemóvel, os convites para ir ao parque que recusei porque “tinha coisas para fazer”. Será que me estava a esconder atrás das poupanças por medo de não ser suficiente?
No domingo seguinte, fui convidada para o almoço de família em casa da Marta. Levei um bolo de laranja feito por mim e decidi deixar os envelopes em casa. Quando cheguei, as crianças estavam no jardim a jogar à macaca.
— Avó! Vens jogar connosco? — gritou a Beatriz.
Sorri e sentei-me no chão ao lado deles. Rimos tanto que me doeram as bochechas. O Tomás ensinou-me as regras novas do jogo e a Leonor fez questão de me dar a mão cada vez que eu quase caía.
Depois do almoço, sentei-me com Marta na varanda.
— Obrigada por vires assim — disse ela baixinho. — Eles estavam a precisar disto… e tu também.
Olhei para os meus netos e percebi que talvez tivesse sido demasiado rígida com as minhas convicções. O dinheiro era importante, sim, mas não podia substituir o tempo nem o afeto.
Naquela noite escrevi-lhes uma carta:
“Queridos netos,
Sei que às vezes posso parecer diferente das outras avós. Sempre quis garantir-vos um futuro seguro porque vos amo mais do que tudo neste mundo. Mas percebo agora que o presente mais valioso é o tempo que passamos juntos. Prometo estar mais presente nas vossas vidas e criar memórias convosco.
Com amor,
Avó Linda”
No Natal desse ano, levei-lhes pequenos presentes: um livro para a Leonor, um puzzle para o Tomás e uma caixa de lápis de cor para a Beatriz. Mas levei também uma promessa: todos os meses teríamos um dia só nosso.
Os envelopes continuam guardados numa gaveta do meu quarto. Sei que um dia lhes vão ser úteis, mas agora sei também que nenhum valor no banco pode substituir um abraço apertado ou uma tarde de gargalhadas no parque.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes deixamos de viver o presente por medo do futuro? Será que conseguimos encontrar equilíbrio entre proteger quem amamos e simplesmente estar ao lado deles? Gostava tanto de saber como vocês veem isto…