Recusei-me a Tomar Conta da Minha Neta e Agora Enfrento uma Guerra Familiar

— Mãe, não podes mesmo ficar com a Leonor esta semana? — A voz do Marco soava cansada, quase suplicante, do outro lado do telefone.

Senti o coração apertar. Olhei para o avental manchado de tinta, as mãos ainda sujas do trabalho que tanto me entusiasmava. O cheiro a verniz misturava-se com o aroma do café acabado de fazer. Tinha finalmente começado o meu pequeno negócio de restauro de móveis, algo que sempre sonhara mas nunca tivera coragem de tentar enquanto os filhos eram pequenos e a casa cheia de responsabilidades.

— Marco, já te disse… agora não posso. Tenho encomendas para entregar até sexta-feira. — Tentei manter a voz firme, mas a culpa já me roía por dentro.

Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro pesado.

— A Sofia vai ficar furiosa. Ela diz que és a avó, que tens obrigação de ajudar. — O tom dele era mais de constatação do que de acusação, mas senti cada palavra como uma facada.

A verdade é que sempre fui aquela mãe presente, aquela mulher que punha os outros à frente de si própria. Quando o meu marido morreu, há dez anos, dediquei-me ainda mais aos filhos. Fui mãe, pai, conselheira, enfermeira, cozinheira. E agora, quando finalmente sentia que podia respirar e ser só eu, esperavam que voltasse a ser tudo para todos.

A Sofia nunca gostou muito de mim. Sempre achei que me via como uma ameaça à autoridade dela na vida do Marco. Mas quando nasceu a Leonor, pensei que as coisas iam mudar. Afinal, uma neta une qualquer família… ou assim pensava eu.

Naquela noite, sentei-me sozinha na cozinha. O relógio marcava quase meia-noite e eu ainda tinha pincéis para lavar e móveis para lixar. Mas não conseguia parar de pensar no telefonema. Senti-me egoísta. Senti-me livre. Senti-me perdida.

No dia seguinte, a Sofia apareceu cá em casa sem avisar. Bateu à porta com força e entrou sem esperar resposta.

— Olá, Sofia… — tentei sorrir.

Ela nem respondeu ao cumprimento.

— Preciso de falar consigo — disse, fria como gelo.

Sentou-se à mesa da cozinha e olhou-me nos olhos.

— Não percebo como pode recusar ajudar o seu próprio filho. Acha justo? O Marco está exausto no trabalho, eu também… E a Leonor precisa de si! — A voz dela tremia de raiva.

Respirei fundo. Tentei explicar-lhe o quanto aquele projeto significava para mim, como era importante sentir-me útil para além dos papéis de mãe e avó. Mas ela não quis ouvir.

— Isto é puro egoísmo! — atirou-me à cara. — Quando precisar de si no hospital ou quando for velha e estiver sozinha, não conte connosco!

As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. O Marco deixou de me ligar. Os meus outros filhos começaram a mandar mensagens secas, como se eu tivesse cometido um crime imperdoável.

No domingo seguinte, fui à missa como sempre fazia. As vizinhas cumprimentaram-me com o habitual calor, mas senti os olhares curiosos e os cochichos atrás das costas. A notícia espalhara-se: “A Dona Teresa recusou-se a ficar com a neta!” Em poucos dias, passei de ser a matriarca respeitada da família para ser vista como uma mulher fria e egoísta.

Comecei a duvidar de mim própria. Será que estava errada? Será que devia abdicar dos meus sonhos para cumprir o papel que todos esperavam de mim? Mas depois olhava para as minhas mãos calejadas do trabalho e sentia um orgulho silencioso por finalmente estar a construir algo só meu.

As semanas passaram e o silêncio entre mim e o Marco tornou-se ensurdecedor. A Leonor fazia anos em maio e eu não sabia se seria convidada para a festa. Os meus outros netos começaram a perguntar porque é que já não ia buscá-los à escola ou porque não fazia bolos ao domingo como antes.

Uma tarde, enquanto lixava um velho aparador no quintal, ouvi passos atrás de mim. Era o Marco. Estava magro, olheiras fundas.

— Mãe… — começou ele, hesitante — Desculpa ter desaparecido assim.

Larguei a lixa e limpei as mãos ao avental.

— Não faz mal, filho…

Ele sentou-se no banco ao meu lado e ficou em silêncio durante uns minutos.

— A Sofia está muito zangada contigo. Diz que não quer mais falar contigo enquanto não pedires desculpa.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Pedir desculpa porquê? Por querer viver um bocadinho para mim? Por não abdicar dos meus sonhos outra vez?

Ele baixou os olhos.

— Eu percebo-te, mãe… Mas está tudo tão difícil…

Abracei-o. Senti-o tremer nos meus braços como quando era pequeno e tinha medo do escuro.

— Eu amo-vos a todos — disse-lhe baixinho — Mas também preciso de me amar a mim própria.

Ele chorou baixinho no meu ombro. E eu chorei com ele.

No dia seguinte, recebi uma mensagem da Sofia: “Não conte mais comigo para nada.” O Marco deixou de vir cá a casa. Os meus outros filhos começaram a afastar-se também, talvez por medo de serem alvo da mesma fúria da Sofia ou talvez porque nunca tinham visto a mãe dizer “não” antes.

Os meses passaram devagar. O negócio foi crescendo devagarinho; comecei a ter clientes fora da vila e até fui convidada para expor algumas peças numa feira em Lisboa. Mas cada conquista vinha misturada com uma tristeza funda: faltavam-me os risos dos netos pela casa, as conversas à mesa ao domingo.

No Natal desse ano, preparei tudo como sempre: bacalhau com todos, rabanadas, arroz doce com canela em forma de coração. Mas ninguém apareceu. Fiquei sentada à mesa posta para oito pessoas, sozinha com as luzes da árvore a piscar num silêncio doloroso.

Na noite da passagem de ano escrevi uma carta à Leonor:

“Querida neta,
Se algum dia leres isto quero que saibas que te amo muito. Às vezes os adultos fazem escolhas difíceis e nem sempre são compreendidos. Espero que um dia entendas que também tive de escolher cuidar de mim para poder continuar a amar os outros com verdade.”

Guardei a carta numa caixa junto às fotografias antigas da família.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Será que devia ter cedido só mais uma vez? Ou será que finalmente aprendi o valor de dizer ‘não’, mesmo quando isso significa perder tudo?

E vocês? Já tiveram de escolher entre vocês próprios e as expectativas da vossa família? Até onde vai o dever e onde começa o direito à nossa própria felicidade?