Entre o Amor e a Liberdade: O Dilema de Ser Avó em Portugal
— Mãe, podes ficar com o Tomás amanhã? — perguntou a minha filha, Joana, com aquela voz doce, mas já carregada de expectativa. Eu estava sentada à mesa da cozinha, a chávena de chá ainda quente entre as mãos, e senti o coração apertar-se. Não era a primeira vez. Nem seria a última.
Olhei para ela, tentando esconder o cansaço nos meus olhos. — Amanhã? Joana, amanhã tenho a aula de ioga…
Ela suspirou, desviando o olhar. — Mas é só uma manhã, mãe. Preciso mesmo. O Pedro tem reunião e eu tenho que ir ao tribunal.
O Tomás, com os seus cinco anos, brincava no tapete da sala, alheio à tensão que pairava no ar. Senti-me dividida entre o amor imenso que sentia por aquele menino e o desejo profundo de, finalmente, viver para mim.
Sempre pensei que, depois dos sessenta, a vida me pertenceria. Que quando os filhos fossem independentes e a reforma chegasse, eu poderia respirar fundo e fazer tudo aquilo que sempre adiei: ir à praia fora da época alta, aprender italiano, inscrever-me em aulas de pintura. Mas ninguém me avisou que ser avó em Portugal era quase como assinar um novo contrato de trabalho — sem salário, sem férias e sem direito a dizer não.
— Claro, Joana — respondi, sentindo-me traidora de mim mesma. — Fico com ele.
Ela sorriu, aliviada. — Obrigada, mãe. Não sei o que faria sem ti.
Quando ela saiu, fiquei sozinha com o silêncio da casa. O relógio da parede marcava as horas lentas da minha solidão. Senti-me culpada por desejar outra coisa para mim. Culpada por não querer ser apenas “a avó disponível”.
Lembrei-me da minha própria mãe. Ela nunca teve tempo para si. Cuidou dos netos até ao fim, sempre com um sorriso resignado. Será que era feliz? Ou também sonhava com uma liberdade que nunca chegou?
No dia seguinte, enquanto o Tomás desenhava monstros coloridos na mesa da sala, olhei pela janela e vi o autocarro passar. Lembrei-me das viagens que prometi fazer a mim mesma. Da promessa de não me perder nos outros. Mas ali estava eu, mais uma vez, a adiar os meus sonhos.
À noite, quando Joana veio buscar o Tomás, tentei falar com ela.
— Filha… Sabes que gosto muito de ajudar, mas também preciso de tempo para mim.
Ela franziu o sobrolho. — Achas que eu não percebo? Mas tu és reformada! Tens todo o tempo do mundo!
— Não é bem assim… — tentei explicar. — Quero fazer coisas minhas. Não quero ser só avó.
Joana ficou em silêncio por um momento. Depois encolheu os ombros e disse: — Eu não tive essa sorte contigo quando era pequena. Sempre trabalhaste tanto…
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça como uma acusação velada. Será que estava a ser egoísta? Ou seria apenas humana?
Os dias passaram e as solicitações continuaram: consultas médicas do neto, idas ao parque, almoços improvisados porque “a mãe está cheia de trabalho”. O meu calendário encheu-se de compromissos que não eram meus.
Uma tarde, sentei-me no banco do jardim enquanto o Tomás corria atrás dos pombos. Ao meu lado estava a Dona Amélia, vizinha do terceiro andar.
— Também está de serviço aos netos? — perguntou ela, com um sorriso cansado.
Assenti. — Parece que sim…
— Sabe, às vezes sinto falta de quando só tinha de cuidar de mim — confessou ela. — Mas depois penso: se não formos nós, quem será?
Fiquei a pensar nisso durante dias. Será esse o destino das mulheres portuguesas? Ser sempre o suporte invisível da família?
Numa noite chuvosa, decidi falar com o meu filho mais velho, Miguel.
— Mãe, tu és fundamental para nós — disse ele. — Mas tens direito à tua vida. Porque não falas com a Joana outra vez?
Criei coragem e marquei um almoço só com ela. O restaurante estava cheio de vozes e cheiros familiares. Quando lhe contei como me sentia, vi nos olhos dela uma mistura de surpresa e mágoa.
— Nunca pensei que te sentisses assim… — murmurou Joana. — Sempre foste tão forte.
— Ser forte não significa não precisar de espaço — respondi.
Ela ficou calada durante muito tempo. Depois pegou na minha mão.
— Vou tentar pedir menos… Mas sabes que às vezes sinto-me tão sozinha nisto tudo…
Foi nesse momento que percebi: ambas estávamos presas em papéis que não escolhemos totalmente. Ela na maternidade exaustiva; eu na avó sempre presente.
Começámos a negociar: um dia por semana para mim; outro para ela descansar sem filhos nem trabalho. Aos poucos fui recuperando pequenos pedaços do meu tempo: voltei à ioga, inscrevi-me num curso de italiano online (mesmo que só tivesse tempo para duas aulas por mês), comecei a caminhar sozinha à beira-rio nas manhãs de quarta-feira.
Mas nem tudo foi fácil. A família resmungou; os vizinhos comentaram; até o meu marido achou estranho ver-me “tão independente” depois de tantos anos dedicada aos outros.
— Não tens medo de ficar sozinha? — perguntou ele uma noite.
Olhei para ele e sorri tristemente.
— Às vezes tenho mais medo de nunca me encontrar.
Hoje olho para trás e vejo quantas mulheres como eu existem em Portugal: avós silenciosas, pilares invisíveis das famílias modernas. Quantas de nós sonham com liberdade e sentem culpa por desejá-la?
Será errado querer ser mais do que “a avó disponível”? Ou será este o momento certo para começarmos a falar sobre os nossos próprios sonhos?
E vocês? Já sentiram este conflito entre o amor à família e o desejo de viver para vocês mesmas? Até onde vai o nosso dever… e onde começa o nosso direito à felicidade?