Carta a um desconhecido: O dia em que defendi o meu filho
— Olhe bem para o seu filho. É uma vergonha, devia era tê-lo deixado em casa! — A voz do homem ecoou pelo corredor do supermercado, cortando o ar como uma lâmina. Senti o sangue gelar-me nas veias. O Tomás, com os seus olhos amendoados e sorriso aberto, olhava para mim sem perceber a violência das palavras que acabavam de ser lançadas.
Por um segundo, hesitei. O que se responde a alguém que cospe veneno assim, em plena luz do dia, diante de desconhecidos? O meu coração batia tão forte que temi que todos à volta o ouvissem. A minha mãe, Maria do Carmo, sempre me ensinou a não baixar a cabeça, mas naquele momento só queria agarrar no Tomás e fugir dali.
— Mamã, vamos para casa? — perguntou ele, apertando-me a mão pequenina.
Olhei para o homem. Tinha ar de quem já não esperava nada da vida, talvez descontasse nos outros a sua própria amargura. Mas não era justo. Não era justo que o meu filho pagasse pelos fantasmas de alguém.
Naquela noite, depois de deitar o Tomás, sentei-me à mesa da cozinha. Oiço ainda os risos abafados de duas senhoras que assistiram à cena e nada disseram. Senti-me sozinha, esmagada por uma tristeza antiga, aquela que me acompanha desde que soube do diagnóstico do Tomás. Lembro-me do dia em que o médico entrou no quarto do hospital e disse:
— Gianna, o seu filho tem trissomia 21.
O meu mundo desabou. O Pedro, meu marido, ficou em silêncio durante dias. A minha sogra, Dona Lurdes, chorou como se tivesse recebido uma sentença. Só a minha mãe me abraçou e disse:
— Ele é teu filho. Vai ser amado como qualquer outro.
Mas nem todos pensam assim. E hoje, anos depois, percebo que o preconceito é uma doença silenciosa, que se transmite de geração em geração.
Peguei numa folha e comecei a escrever. Não sabia se alguma vez aquela carta chegaria ao seu destinatário, mas precisava de libertar tudo aquilo que me sufocava.
“Senhor desconhecido,
Hoje insultou o meu filho no supermercado. Chamou-lhe vergonha. Disse que devia tê-lo deixado em casa. Queria dizer-lhe que vergonha é não saber olhar para uma criança e ver nela apenas um ser humano.
O Tomás tem sete anos. Gosta de comboios, de gelado de morango e de ouvir histórias antes de dormir. Tem síndrome de Down, sim. Mas não é menos por isso. É mais: mais generoso, mais sensível, mais capaz de perdoar do que muitos adultos.
Pergunto-lhe: alguma vez olhou para alguém sem esperar nada em troca? Já sentiu alegria só porque alguém lhe sorriu?
O senhor não conhece o Tomás. Não sabe das noites em claro quando ele era bebé e lutava para respirar. Não sabe das consultas, das terapias, das pequenas vitórias que celebramos como se fossem medalhas olímpicas.
Hoje magoou-nos. Mas amanhã vamos continuar a sair à rua. Vamos continuar a sorrir e a acreditar que o mundo pode ser melhor.
Espero que um dia olhe para trás e perceba que perdeu uma oportunidade de ser gentil.
Com esperança,
Gianna”
No dia seguinte, mostrei a carta ao Pedro. Ele leu em silêncio e depois abraçou-me como há muito não fazia.
— Desculpa não ter estado lá ontem — murmurou. — Às vezes sinto-me tão impotente…
— Não tens de pedir desculpa — respondi-lhe. — Só quero que o Tomás cresça num mundo onde não precise de se esconder.
A carta acabou por circular entre amigos e familiares. A minha irmã Inês partilhou-a nas redes sociais e rapidamente começaram a chegar mensagens de apoio e partilha de histórias semelhantes. Uma mãe contou-me como o filho dela foi excluído da festa de aniversário do colega por “ser diferente”; outra confessou que ainda não teve coragem de levar a filha ao parque infantil por medo dos olhares.
O Tomás percebeu que algo se passava. Um dia perguntou-me:
— Mamã, porque é que as pessoas olham para mim assim?
Apertei-o contra mim e disse-lhe:
— Porque ainda não aprenderam a ver com o coração.
A verdade é que nem sempre fui forte. Houve dias em que chorei sozinha na casa de banho para ele não ver. Dias em que invejei as outras mães por poderem viver sem medo dos olhares ou dos comentários sussurrados nos corredores da escola.
A relação com o Pedro também sofreu. Ele mergulhou no trabalho para fugir à dor. Eu sentia-me abandonada, mas não tinha forças para discutir. Só quando escrevi aquela carta percebi que precisava dele ao meu lado — não como pai perfeito, mas como companheiro na luta diária contra a ignorância.
A minha sogra continuava a evitar falar do assunto. Um domingo ao almoço, depois de um silêncio constrangedor enquanto o Tomás brincava na sala, ela disse:
— Gianna… às vezes penso se não teria sido melhor…
Não terminou a frase. Mas eu sabia o que ela queria dizer: se não teria sido melhor não ter tido o Tomás.
Levantei-me da mesa e fui buscar o meu filho. Sentei-o ao colo e olhei-a nos olhos:
— O Tomás é a melhor coisa que me aconteceu na vida. E se não consegue ver isso… talvez seja melhor repensar as suas prioridades.
Ela chorou baixinho nesse dia. Não sei se foi arrependimento ou apenas tristeza por não conseguir amar como devia.
Com o tempo, aprendi a escolher as minhas batalhas. Nem sempre respondo aos insultos ou aos olhares tortos na rua. Mas nunca mais deixei passar em branco uma injustiça contra o meu filho.
Um dia, ao sair da escola, uma mãe aproximou-se de mim:
— Li a sua carta na internet… Queria pedir desculpa por nunca ter falado consigo antes. O meu filho gosta muito do Tomás.
Sorri-lhe com gratidão misturada com mágoa antiga.
— Obrigada por dizer isso — respondi. — Às vezes só precisamos de um gesto para mudar tudo.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquele dia no supermercado. O Tomás ensinou-me mais sobre coragem e amor do que qualquer livro ou curso poderia ensinar.
Às vezes pergunto-me: quantos “Tomás” continuam escondidos porque os pais têm medo do mundo? Quantas cartas ficam por escrever?
E vocês? O que fariam se fosse convosco?