Quando as Portas se Fecham: A História de Ana, Leonor e o Fio Partido da Confiança
— Ana, por favor, não me deixes lá fora! — A voz da Leonor, embargada pelo choro e pelo vento, ecoava pelo intercomunicador, misturando-se com o ribombar dos trovões. Eu tremia, com o telefone na mão, sentindo o peso do olhar do Diogo cravado em mim.
— Não podemos, Ana. Não esta noite — disse ele, a voz baixa mas firme, como se cada palavra fosse um tijolo a erguer um muro entre mim e a minha melhor amiga.
O relógio marcava quase meia-noite. A tempestade parecia querer arrancar Lisboa do mapa. O prédio antigo onde morávamos rangia a cada rajada de vento. Eu olhava para a porta, para o telefone, para o Diogo. E sentia-me dividida ao meio.
Leonor era mais do que uma amiga. Era como uma irmã. Crescemos juntas em Setúbal, partilhámos segredos, sonhos e até as primeiras desilusões amorosas. Quando vim para Lisboa estudar Direito, ela veio atrás de mim para tirar Psicologia. Sempre juntas, sempre cúmplices. Até aquela noite.
— Diogo, ela não tem para onde ir! — supliquei, tentando controlar as lágrimas.
Ele desviou o olhar para a janela, onde a chuva batia com força. — Ana, já te disse: não quero problemas cá em casa. A Leonor mete-se sempre em confusões e depois somos nós que pagamos.
— Mas ela é minha amiga! — gritei, incapaz de conter a raiva e o desespero.
Ele aproximou-se e baixou a voz: — E eu sou teu marido. Não te esqueças disso.
As palavras dele cortaram-me como facas. Senti-me pequena, encurralada entre dois amores diferentes. O telefone vibrou outra vez. Uma mensagem da Leonor: “Por favor, Ana. Só esta noite.”
Lembrei-me de todas as vezes que ela me salvou: quando o meu pai morreu e ela ficou comigo noites inteiras; quando falhei um exame importante e ela me levou à praia para chorar; quando descobri que estava grávida e tive medo de contar à minha mãe. Leonor nunca me fechou a porta.
Mas agora era eu quem segurava a chave.
— Se abrires essa porta, Ana, vais arrepender-te — ameaçou Diogo, cruzando os braços.
O medo apoderou-se de mim. Não era só medo da tempestade lá fora, mas do furacão que se formava dentro de casa. O nosso casamento já andava frágil há meses: discussões por dinheiro, pela falta de tempo um para o outro, pelas noites em que ele chegava tarde sem explicação. E agora isto.
Respirei fundo e aproximei-me da porta. O coração batia tão forte que quase abafava o barulho da chuva. Encostei o ouvido à madeira e ouvi os soluços da Leonor do outro lado.
— Ana… — sussurrou ela, quase sem voz.
Fechei os olhos e deixei as lágrimas correrem. — Desculpa, Leonor… Não posso…
Ouvi os passos dela afastarem-se pelo corredor do prédio. O som dos saltos misturava-se com o eco dos trovões. Senti um vazio imenso dentro de mim.
Na manhã seguinte, acordei cedo e tentei ligar-lhe dezenas de vezes. Sem resposta. Fui trabalhar como um autómato, incapaz de me concentrar em qualquer coisa que não fosse o rosto dela naquela noite.
Os dias passaram e Leonor desapareceu do mapa. Ninguém sabia dela: nem colegas de trabalho, nem amigos comuns. A mãe dela ligou-me a chorar: “Ana, sabes onde está a minha filha?” Eu menti: “Não faço ideia.”
O Diogo fingia que nada se passava. Continuava com as suas rotinas: trabalho, futebol com os amigos, cervejas ao fim-de-semana. Mas eu via-o olhar para mim com desconfiança, como se temesse que eu fosse atrás da Leonor.
Uma semana depois, recebi uma carta sem remetente. Reconheci imediatamente a letra da Leonor:
“Ana,
Não te culpo por nada. Sei que fiz escolhas erradas e que te pus numa posição impossível. Só queria que soubesses que sempre foste a minha família verdadeira. Espero que um dia consigas perdoar-te por não teres aberto a porta – eu já te perdoei.
Com amor,
Leonor”
Chorei durante horas agarrada àquela folha de papel. Senti-me miserável, cobarde, traidora.
Os meses passaram e nunca mais soube dela. O Diogo tentou fazer as pazes comigo várias vezes, mas algo se partiu entre nós naquela noite – algo irreparável.
A minha mãe dizia-me: “A vida é feita de escolhas difíceis.” Mas ninguém nos prepara para as consequências das escolhas erradas.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Almada. O casamento acabou pouco depois daquela noite fatídica – não por causa da Leonor apenas, mas porque percebi que já não reconhecia quem era ao lado do Diogo.
Às vezes sonho com aquela noite: vejo-me diante da porta fechada, ouço os gritos da tempestade e sinto o peso insuportável da culpa.
Pergunto-me todos os dias: quantas vezes na vida fechamos portas por medo? E será que alguma vez conseguimos perdoar-nos verdadeiramente por isso?