O Segredo Que Nasceu Entre Nós: O Dia em Que o Meu Mundo Ruiu na Maternidade de Santa Maria

— Não me deixes, por favor! — gritava a Inês, agarrada à minha mão com tanta força que quase me partia os dedos. O suor escorria-lhe pela testa, os olhos arregalados de dor e medo. Eu tentava manter a calma, mas o meu coração batia tão rápido que parecia querer saltar-me do peito. O cheiro a desinfetante misturava-se com o odor metálico do sangue e o choro abafado de outras mulheres nos quartos ao lado. Era madrugada no Hospital de Santa Maria e Lisboa parecia suspensa no tempo.

Inês era a minha melhor amiga desde os tempos do liceu em Odivelas. Crescemos juntas, partilhámos segredos, sonhos e desilusões. Quando ela me contou que estava grávida, senti-me tão feliz como se fosse eu. O pai do bebé, o Rui, era um tipo simpático, mas sempre achei que havia algo nele que não batia certo. Talvez fosse só ciúmes meus — afinal, desde que ele apareceu, Inês já não tinha tanto tempo para mim.

Naquela noite, o Rui estava em viagem de negócios no Porto. Inês entrou em trabalho de parto mais cedo do que o previsto e ligou-me em pânico. Corri para o hospital sem pensar duas vezes. Quando cheguei, ela já estava com contrações fortes. Os médicos deixaram-me ficar ao lado dela — até me deram uma pulseira azul que dizia “Acompanhante”. Brinquei com ela:

— Olha, sou quase o pai do bebé! — tentei sorrir, mas ela só conseguiu retribuir com uma careta de dor.

As horas arrastaram-se entre gritos, lágrimas e promessas sussurradas. “Vai correr tudo bem”, repetia eu, mas nem sabia se acreditava nisso. Quando finalmente ouvi o choro do bebé, senti um alívio tão grande que quase desatei a chorar também.

O médico colocou a menina nos braços da Inês. Ela olhou para mim, olhos marejados:

— Obrigada por estares aqui… Não sei o que faria sem ti.

Ajudei-a a mudar a fralda da bebé enquanto ela descansava. Foi aí que reparei numa pequena marca de nascença na perna da menina — uma mancha castanha em forma de meia-lua. Fiquei gelada. Aquela marca era igualzinha à que o meu marido, Miguel, tinha na mesma perna. Lembrei-me das histórias da família dele: “É uma marca rara, passa de geração em geração”, costumava dizer a sogra.

O sangue gelou-me nas veias. Tentei afastar o pensamento — era impossível! Mas quanto mais olhava para a bebé, mais via nela traços familiares: o nariz arrebitado do Miguel, o formato dos olhos… Senti-me tonta. Sentei-me na cadeira ao lado da cama da Inês e fiquei ali, paralisada.

No dia seguinte, Rui chegou ao hospital com um ramo de flores barato e um sorriso nervoso. Beijou Inês na testa e pegou na bebé ao colo. Eu observava-os como quem vê um filme de terror em câmara lenta.

— É igualzinha à mãe — disse ele.

Inês desviou o olhar. Notei-lhe as mãos a tremer.

Durante as semanas seguintes, tentei convencer-me de que estava a enlouquecer. Mas a dúvida corroía-me por dentro. Miguel começou a agir de forma estranha: chegava tarde a casa, evitava olhar-me nos olhos. Uma noite, depois de um jantar silencioso, não aguentei mais:

— Miguel… preciso de te perguntar uma coisa. Alguma vez… tu e a Inês…

Ele largou os talheres e ficou branco como a cal.

— O que é que estás para aí a dizer?

— Não mintas! Eu vi… vi uma marca na bebé da Inês igual à tua! E ela tem os teus olhos! — A minha voz saiu num sussurro desesperado.

Miguel passou as mãos pelo cabelo, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

— Foi só uma vez… Estávamos bêbedos… Tu tinhas ido visitar os teus pais ao Alentejo… Eu não queria…

Senti um nó na garganta tão apertado que mal conseguia respirar. As lágrimas começaram a cair sem controlo.

— Como é que pudeste? Com a minha melhor amiga?!

Ele tentou aproximar-se de mim, mas recuei como se tivesse levado um murro no estômago.

— Desculpa… Eu amo-te… Não significou nada!

— Não significou nada?! Agora há uma criança! — gritei.

Nessa noite dormi no sofá. No dia seguinte, liguei à Inês:

— Precisamos de falar.

Encontrámo-nos num café discreto em Benfica. Ela chegou atrasada, olheiras fundas e ar envergonhado.

— Já sabes tudo, não já? — murmurou ela antes mesmo de eu abrir a boca.

— Como é que me fizeste isto? — perguntei entre dentes.

Ela começou a chorar baixinho:

— Eu não queria… Foi um erro horrível… Senti-me tão sozinha naquela altura… O Rui estava sempre fora… O Miguel apareceu lá em casa para me ajudar com umas caixas… Bebemos vinho… Não sei como aconteceu… Juro-te que nunca mais aconteceu nada!

Ficámos ali sentadas em silêncio durante minutos intermináveis. O barulho das chávenas e das conversas à nossa volta parecia vir de outro mundo.

— E agora? Vais contar ao Rui? — perguntei finalmente.

Ela abanou a cabeça:

— Não consigo… Ele nunca me perdoaria. E tu? Vais deixar o Miguel?

Olhei para as minhas mãos trémulas:

— Não sei… Sinto-me perdida. Tudo o que eu conhecia desmoronou-se num instante.

Nos dias seguintes, tentei manter as aparências por causa dos meus filhos pequenos. Mas cada vez que olhava para o Miguel sentia raiva e tristeza misturadas numa dor surda no peito. A Inês mandava mensagens todos os dias: “Desculpa”, “Preciso de ti”, “Não me deixes sozinha nisto”.

O Rui continuava alheio a tudo, orgulhoso do papel de pai dedicado. Eu via-o passear com a bebé no jardim da Gulbenkian e sentia uma pontada de culpa por guardar aquele segredo terrível.

A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem:

— Estás tão magra… O que se passa contigo?

Quase lhe contei tudo, mas calei-me. Como explicar tamanha traição? Como admitir que perdi tudo — marido e melhor amiga — numa só noite?

O tempo passou devagar. As noites eram longas e frias. Às vezes acordava sobressaltada com pesadelos: via o Miguel e a Inês juntos, riam-se de mim enquanto eu gritava sem voz.

Um dia, sentei-me no banco do miradouro da Senhora do Monte e chorei até não ter mais lágrimas. Olhei Lisboa lá em baixo e perguntei-me se alguma vez voltaria a confiar em alguém.

Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Campo de Ourique. Os meus filhos vêm cá aos fins-de-semana. O Miguel tenta reconquistar-me com flores e promessas vãs. A Inês mudou-se para Faro com a filha; raramente falamos.

Às vezes olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar uma traição destas? Ou será que há feridas que nunca saram? E vocês… já sentiram o chão fugir-vos dos pés assim?