O Círculo Partido: Uma Amizade, Um Nascimento, Um Segredo

— Mariana, por favor, não me deixes agora! — suplicava Sofia, agarrando-me com força ao pulso enquanto as contrações lhe rasgavam o corpo e a alma. O suor escorria-lhe pela testa, misturando-se com as lágrimas que não conseguia conter. Eu estava ali, de mãos dadas com ela, no pequeno quarto do hospital de Santa Maria, sentindo o peso do mundo nos ombros.

A noite lá fora era fria e húmida, típica de Lisboa em janeiro. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume suave de lavanda que Sofia usava sempre que estava nervosa. O relógio marcava três da manhã e eu já não sentia as pernas de tanto tempo em pé. Mas não era o cansaço físico que me consumia — era o medo. O medo de perder a minha melhor amiga para um mundo onde eu já não cabia.

— Vai correr tudo bem, Sofia. Estou aqui, prometo — disse-lhe, tentando esconder o tremor na minha voz. Mas ela percebeu. Sempre percebeu tudo em mim.

O parto foi longo e doloroso. Quando finalmente ouvi o primeiro choro da bebé, senti um alívio tão intenso que quase me fez desmaiar. Sofia chorava e ria ao mesmo tempo, abraçando aquela pequena vida como se fosse a única coisa que importava no mundo. E talvez fosse mesmo.

— Mariana, queres pegar nela? — perguntou-me, com os olhos brilhantes de felicidade.

Peguei na bebé nos meus braços. Era tão pequena, tão frágil… e tão parecida com alguém que eu conhecia demasiado bem. O nariz arrebitado, o formato dos olhos… O meu coração gelou. Não podia ser. Não podia.

— Mariana? Estás bem? — Sofia olhava para mim, preocupada.

— Sim… só estou emocionada — menti, tentando sorrir enquanto uma tempestade se formava dentro de mim.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cadeira desconfortável do hospital, olhando para Sofia e para a bebé. A cada minuto que passava, as semelhanças tornavam-se mais evidentes. Não era só impressão minha. Aquela criança era filha do meu irmão, Miguel.

Miguel e eu sempre fomos muito próximos. Ele era o meu porto seguro desde pequenos, quando os nossos pais discutiam noite dentro na velha casa de Benfica. Mas há dois anos, depois de uma discussão feia sobre dinheiro e heranças, deixámos de nos falar. Eu sabia que ele tinha andado perdido, metido em problemas e relações fugazes. Mas nunca imaginei que tivesse estado com Sofia.

No dia seguinte, quando Sofia adormeceu exausta, saí do hospital e liguei ao Miguel pela primeira vez em meses.

— Mariana? — a voz dele soou rouca e distante.

— Preciso de falar contigo. Agora.

Encontrámo-nos num café discreto perto do Campo Pequeno. Ele estava mais magro, com olheiras profundas e um ar cansado.

— O que se passa? — perguntou ele, evitando olhar-me nos olhos.

— A filha da Sofia… é tua? — disparei, sem rodeios.

Ele ficou em silêncio durante longos segundos. Depois baixou a cabeça e murmurou:

— Eu não sabia… Ela nunca me disse nada.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como era possível? Como é que os dois seres mais importantes da minha vida me tinham escondido algo tão grande?

Voltei ao hospital com o coração despedaçado. Quando Sofia acordou, sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão.

— Preciso de te perguntar uma coisa… Porquê nunca me disseste que estiveste com o Miguel?

Ela ficou pálida. Os olhos encheram-se de lágrimas.

— Mariana… Eu ia contar-te. Juro que ia. Mas depois tu e ele zangaram-se… E eu fiquei com medo de perder-vos aos dois.

— E agora? Achas que não te perdi? — perguntei, sentindo a voz falhar.

Ela chorou em silêncio. Eu também chorei. Chorámos juntas, como tantas vezes antes — mas desta vez havia um abismo entre nós.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Sofia saiu do hospital e foi viver para casa da mãe dela em Almada. Eu evitava vê-la, mas sentia falta dela todos os dias. Miguel ligava-me constantemente, pedindo para ver a filha. Eu não sabia o que fazer: devia proteger Sofia ou dar ao meu irmão a oportunidade de ser pai?

A minha mãe percebeu logo que algo se passava.

— Mariana, tu andas estranha. O que se passa contigo e com a Sofia?

— Nada, mãe… Só estamos ocupadas.

Ela não acreditou. As mães nunca acreditam.

Uma noite, depois de um jantar silencioso em casa dos meus pais, Miguel apareceu à porta com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Preciso mesmo de falar contigo — disse ele à nossa mãe.

Fecharam-se na sala durante horas. Eu ouvia os sussurros através da porta: palavras como “filha”, “responsabilidade”, “perdão” pairavam no ar como fantasmas antigos.

No dia seguinte, a minha mãe chamou-me à cozinha.

— Mariana… O teu irmão contou-me tudo. Não podemos apagar o passado, mas podemos tentar fazer as coisas bem daqui para a frente.

Senti-me esmagada pelo peso das expectativas familiares. Sempre fui aquela que tentava manter todos unidos — agora era eu quem estava no centro da tempestade.

Decidi procurar Sofia. Encontrei-a no jardim da casa da mãe dela, embalada pelo vento frio do Tejo.

— Precisamos de conversar — disse-lhe, sentando-me ao lado dela no banco de madeira gasto pelo tempo.

Ela olhou para mim com olhos cansados.

— Tenho saudades tuas — murmurou.

— Eu também… Mas não sei como perdoar isto tudo.

Ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Depois ela pegou na minha mão e disse:

— A vida nem sempre é justa connosco. Mas eu nunca quis magoar-te.

Eu sabia disso. No fundo do coração, sabia que ela não tinha planeado nada disto. Mas isso não tornava as coisas mais fáceis.

Os meses passaram devagar. Miguel começou a visitar a filha aos poucos; Sofia permitiu-o com relutância mas percebeu que era o melhor para a bebé. Eu fui reconstruindo aos poucos a relação com ambos — mas nunca voltou a ser igual.

No primeiro aniversário da bebé, estávamos todos juntos numa sala cheia de balões cor-de-rosa e risos nervosos. Olhei para Sofia e Miguel: dois estranhos ligados por uma criança inocente e por um segredo que nunca deveria ter existido.

Às vezes pergunto-me se alguma vez voltaremos a ser como antes; se é possível colar os pedaços partidos de um círculo quebrado pela verdade. Será que alguma vez conhecemos verdadeiramente aqueles que amamos? E vocês… já sentiram o peso de um segredo assim?