A Portuguesa Que Tentou Viver Sem Gastar Um Cêntimo Durante Cinco Anos
— Maria, tu enlouqueceste? Vais mesmo viver sem gastar dinheiro? — O tom da minha mãe ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro a café acabado de fazer e o som abafado da chuva contra as janelas.
Olhei para ela, sentindo o peso do seu olhar e das palavras que não disse. Tinha 34 anos e, naquele momento, sentia-me mais perdida do que nunca. O desemprego arrastava-se há meses, as contas acumulavam-se na gaveta da sala e o desespero era um visitante constante. Mas havia algo mais: uma inquietação profunda, uma vontade de provar a mim mesma — e ao mundo — que era possível viver de outra forma.
— Mãe, eu preciso tentar. Não aguento mais esta vida de correr atrás de dinheiro que nunca chega para nada. Quero ver até onde consigo ir sem depender do sistema — respondi, tentando esconder o tremor na voz.
O meu pai, sentado à mesa com o jornal aberto, suspirou alto. — Isso são ideias de gente maluca. Vais acabar sozinha, Maria. E depois? — Não respondi. Talvez porque, no fundo, já me sentia sozinha há muito tempo.
No dia seguinte, deixei a casa dos meus pais em Vila Nova de Gaia com uma mochila velha, um saco de dormir e um caderno onde escrevi: “Cinco anos sem gastar um cêntimo”. O plano era simples: viver do que a terra dava, trocar serviços por comida e abrigo, evitar ao máximo qualquer contacto com dinheiro.
Os primeiros dias foram quase românticos. Dormi num abrigo improvisado junto ao Douro, recolhi castanhas e figos caídos, lavei-me nas águas frias do rio. Conheci o António, um pescador reformado que me ofereceu sopa quente em troca de ajuda a remendar redes. Senti-me livre pela primeira vez em anos.
Mas a liberdade tem um preço alto. Quando o outono deu lugar ao inverno, o frio tornou-se insuportável. As noites eram longas e húmidas; os ossos doíam-me tanto que mal conseguia dormir. Um dia acordei com febre e percebi que estava sozinha — ninguém vinha perguntar se precisava de ajuda.
A fome começou a apertar. Aprendi a distinguir as plantas comestíveis das venenosas, mas nem sempre acertava. Uma vez passei dois dias de cama com dores de estômago depois de comer bagas desconhecidas. O António já não aparecia tantas vezes; dizia que os vizinhos desconfiavam da minha presença e não queria problemas.
A solidão tornou-se uma sombra constante. Escrevia no caderno para não enlouquecer: “Hoje troquei lenha por batatas. Sinto falta da minha mãe.”
No segundo ano, mudei-me para uma aldeia abandonada no interior do Douro. Encontrei uma casa em ruínas e fiz dela o meu refúgio. Não tinha eletricidade nem água canalizada; lavava-me num poço gelado e aquecia-me com uma lareira improvisada. Cultivei batatas e couves num pequeno terreno que limpei à mão.
Às vezes, os habitantes das aldeias vizinhas vinham ver quem era a mulher estranha que vivia sozinha no monte. Uns traziam pão ou fruta em troca de ajuda nas vindimas; outros olhavam-me com desconfiança ou pena.
— Não tens medo? — perguntava-me a Dona Rosa, uma viúva que vivia a dois quilómetros dali.
— Tenho — admitia eu. — Mas tenho mais medo de voltar para trás.
No terceiro ano, a minha família deixou de me ligar. No início ainda recebia mensagens da minha irmã, Inês: “Volta para casa, Maria. A mãe está preocupada.” Depois, silêncio. Senti-me traída e abandonada, mas também compreendi: era difícil amar alguém que escolhia o isolamento em vez do conforto familiar.
Comecei a falar sozinha para não perder o juízo. Inventava diálogos com pessoas que já não via há anos; discutia comigo própria sobre as escolhas que fizera.
— Achas mesmo que isto vale a pena? — perguntava à Maria do passado.
— Não sei — respondia a Maria do presente. — Mas pelo menos agora sou dona da minha vida.
No quarto ano, adoeci gravemente. Uma gripe transformou-se numa pneumonia porque recusei ir ao centro de saúde — não queria dever nada a ninguém. Passei semanas entre a vida e a morte, delirando com febre alta e sonhos estranhos sobre a infância: os natais em família, as tardes na praia de Miramar, o cheiro do arroz doce da minha avó.
Foi a Dona Rosa quem me salvou. Encontrou-me quase inconsciente e chamou o filho para me levar ao hospital em Lamego. Fiquei internada durante duas semanas; quando acordei, vi a minha mãe sentada ao meu lado, olhos vermelhos de tanto chorar.
— Porque é que fazes isto contigo? — sussurrou ela.
Não soube responder. Só chorei também.
Quando voltei à aldeia, percebi que algo tinha mudado em mim. Já não via o dinheiro como um inimigo absoluto; percebia agora que ele era apenas uma ferramenta — perigosa se usada sem consciência, mas necessária para sobreviver em sociedade.
No quinto ano, decidi escrever sobre a minha experiência. Usei folhas soltas e canetas emprestadas; escrevi sobre as noites frias, os dias de fome, os pequenos gestos de bondade que me salvaram vezes sem conta. Escrevi sobre a solidão e sobre o reencontro com a minha família — lento, doloroso, mas possível.
Hoje vivo numa pequena casa arrendada nos arredores do Porto. Trabalho numa horta comunitária e gasto apenas o essencial. Ainda troco serviços por comida sempre que posso; ainda sinto saudades da liberdade selvagem dos primeiros tempos. Mas aprendi que ninguém é uma ilha — precisamos uns dos outros para sobreviver.
Às vezes pergunto-me: teria sido diferente se tivesse pedido ajuda mais cedo? Valeu a pena perder quase tudo para descobrir o verdadeiro valor das pequenas coisas? E vocês — até onde iriam para se sentirem verdadeiramente livres?