Terceiro Filho, Terceira Guerra: Quando o Amor se Torna Peso

— Outra vez, Ana? Não vês que não temos dinheiro para mais nada? — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café frio e o choro abafado da bebé.

Apertei os punhos, tentando controlar as lágrimas. Olhei para as minhas mãos, cheias de pequenas manchas de detergente e cansaço. A nossa terceira filha, a Matilde, tinha apenas três meses. As outras duas, a Leonor e a Beatriz, brincavam no chão da sala, alheias à tempestade que se abatia sobre nós.

— Eu não comprei nada de novo, Miguel. Só fui ao supermercado buscar leite e fraldas. — A minha voz saiu baixa, quase um sussurro.

Ele passou as mãos pelo cabelo, frustrado. — Não percebes? Cada euro conta! Não era isto que tínhamos planeado…

Queria gritar-lhe que também não era isto que eu tinha sonhado. Que quando me pediu em casamento na praia da Nazaré, prometendo-me uma vida cheia de amor e filhos, nunca imaginei que o amor pudesse pesar tanto. Mas calei-me. Porque as palavras já não serviam para nada.

O Miguel não era sempre assim. Lembro-me do rapaz divertido que me fazia rir nos bancos da universidade em Coimbra. O mesmo que me levou a dançar no meio da rua quando soubemos que íamos ser pais pela primeira vez. Mas agora, entre contas atrasadas, noites mal dormidas e o medo constante de não conseguir dar às nossas filhas o que merecem, ele tornou-se um estranho.

A crise bateu-nos à porta como a tantos outros portugueses. O Miguel perdeu o emprego na construção civil há seis meses. Desde então, faz biscates aqui e ali, mas nada é certo. Eu trabalho num café das sete às duas, mas o ordenado mal chega para pagar a renda do T2 em Queluz.

— Mãe, a Leonor não me deixa brincar com a boneca! — gritou a Beatriz da sala.

Suspirei fundo e fui até elas. Sentei-me no tapete e abracei-as as duas. — Meninas, têm de partilhar. A mãe está cansada…

A Leonor olhou-me com aqueles olhos grandes e sérios. — Mãe, porque é que o pai está sempre zangado?

O nó na garganta apertou ainda mais. Como explicar a uma criança de cinco anos que o mundo dos adultos é feito de medos e frustrações? Que às vezes o amor não chega para pagar as contas?

À noite, depois de adormecer as meninas, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O Miguel estava no sofá, a ver televisão sem som. O silêncio entre nós era mais pesado do que qualquer discussão.

— Achas que fizemos mal em ter mais um filho? — perguntei, sem olhar para ele.

Ele demorou a responder. — Não sei… Talvez devêssemos ter esperado. Ou talvez… — Calou-se.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — Não digas isso. A Matilde não é um erro.

— Não foi isso que eu disse! — levantou-se bruscamente. — Só estou cansado, Ana! Não aguento mais esta pressão! Não sou suficiente!

As lágrimas correram-me pelo rosto sem pedir licença. — Achas que eu aguento? Achas que é fácil para mim? Eu também tenho medo!

Ele saiu para a rua, batendo a porta com força. Fiquei ali sozinha, abraçada à manta e ao vazio.

Os dias seguintes foram iguais: discussões abafadas para não acordar as meninas, olhares frios à mesa do pequeno-almoço, silêncios longos como invernos sem fim. O Miguel começou a chegar cada vez mais tarde a casa. Dizia que estava à procura de trabalho, mas eu sabia que passava horas no café do bairro com outros homens desempregados.

Uma noite, depois de adormecer as meninas (a Matilde só sossegava ao colo), sentei-me na cama e escrevi uma carta ao Miguel. Não tive coragem de lha entregar.

“Miguel,

Sinto falta de nós. Sinto falta do teu riso, das nossas conversas até tarde, dos sonhos partilhados. Sei que estás cansado e zangado com o mundo — eu também estou. Mas não podemos deixar que isto nos destrua. As meninas precisam de nós juntos. Eu preciso de ti.

Com amor,
Ana”

Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira. Talvez um dia lha mostre.

No domingo seguinte fomos almoçar à casa dos meus pais em Sintra. A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem.

— Ana, estás tão magra… Tens dormido?

Sorri-lhe sem vontade. — É só cansaço, mãe.

O meu pai olhou para o Miguel por cima dos óculos. — Então rapaz, já há novidades do trabalho?

O Miguel encolheu os ombros e mudou de assunto.

Depois do almoço, enquanto as crianças brincavam no jardim, a minha mãe sentou-se ao meu lado na cozinha.

— Ana, não podes carregar tudo sozinha. Fala com ele. Procurem ajuda…

— Achas que vale a pena lutar por isto tudo? — perguntei-lhe em voz baixa.

Ela apertou-me a mão. — O amor é bonito quando é fácil, filha. Mas é nos dias maus que se vê quem somos realmente.

Na viagem de regresso a casa ninguém falou. O silêncio era tão denso que quase sufocava.

Nessa noite, quando o Miguel chegou (já depois da meia-noite), sentei-me com ele na cozinha escura.

— Não podemos continuar assim — disse-lhe.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas. Vi ali o rapaz por quem me apaixonei há dez anos atrás.

— Eu sei… Desculpa, Ana. Sinto-me um falhado…

Abracei-o com força. Chorámos os dois em silêncio.

Não sei se vamos conseguir salvar o nosso casamento. Não sei se algum dia voltaremos a ser felizes como antes. Mas sei que não quero desistir sem lutar.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem esta mesma luta silenciosa? Quantos casais se perdem entre contas por pagar e sonhos adiados? Será que o amor resiste quando tudo o resto falha?