A Noite em que Percebi que Nunca Faria Parte da Família do Miguel
— Não percebo porque é que ela tem de vir sempre — ouvi a voz da Dona Teresa, mãe do Miguel, vinda da cozinha, enquanto eu tentava ajudar a pôr a mesa na sala de jantar. O meu coração apertou-se. Fingi não ouvir, mas cada palavra era como uma faca. — O Miguel podia ter escolhido alguém melhor, alguém daqui, que percebesse as nossas tradições.
A minha mão tremia ao pousar os pratos. O cheiro do bacalhau com natas enchia a casa, mas o aroma já não me confortava. Lembrei-me de quando era pequena, de como invejava as famílias dos meus colegas na escola primária em Coimbra — famílias que pareciam unidas, que riam juntas à mesa. Cresci com uma mãe ausente e um pai que só sabia trabalhar e gritar. Sempre prometi a mim mesma que um dia teria uma família diferente.
Quando conheci o Miguel na universidade, achei que finalmente tinha encontrado o meu lugar. Ele era carinhoso, divertido e fazia-me sentir segura. Quando me pediu em casamento, senti-me a pessoa mais sortuda do mundo. Mas desde o início, percebi que a família dele me via como uma intrusa. Dona Teresa nunca perdia uma oportunidade para me lembrar de que eu não era “de cá” — apesar de ter nascido a poucos quilómetros dali.
Naquela noite, o jantar era em honra do aniversário do pai do Miguel. A casa estava cheia: os irmãos dele, as cunhadas, os sobrinhos barulhentos. Sentei-me ao lado do Miguel, tentando sorrir e participar nas conversas. Mas cada vez que tentava contar uma história ou fazer um comentário, alguém mudava de assunto ou ignorava-me.
— Então, Sofia — perguntou o cunhado Paulo, com um sorriso forçado — já arranjaste trabalho ou ainda andas a brincar aos currículos?
Senti o rosto corar. Estava desempregada há três meses, depois de a empresa onde trabalhava ter fechado portas. Procurava todos os dias, mas o mercado não estava fácil.
— Ainda estou à procura — respondi, tentando manter a voz firme.
— Pois… — murmurou Dona Teresa, lançando-me um olhar de desdém. — No meu tempo não havia dessas modernices. Quem queria trabalhar, trabalhava.
Miguel apertou-me a mão debaixo da mesa, mas não disse nada. Senti-me sozinha. Tão sozinha.
O jantar continuou entre risos e piadas internas das quais eu não fazia parte. Quando tentei ajudar a servir a sobremesa, Dona Teresa afastou-me com um gesto brusco.
— Deixa estar, Sofia. Não sabes como se faz isto.
Fui até à varanda respirar fundo. Lá fora, o ar estava frio e húmido. As luzes da cidade brilhavam ao longe. Perguntei-me se algum dia seria aceite ali. Se algum dia seria vista como mais do que “a mulher do Miguel”.
Quando voltei para dentro, ouvi risos vindos da sala. Parei à porta e vi Dona Teresa mostrar fotografias antigas da família: festas, férias na praia, aniversários. Em nenhuma delas eu estava presente — mesmo nas mais recentes, alguém tinha cortado a minha imagem ou escolhido fotos em que eu não aparecia.
Senti as lágrimas subirem-me aos olhos. Saí sem fazer barulho e fui até ao quarto de hóspedes onde tínhamos deixado os casacos. Sentei-me na cama e deixei-me chorar em silêncio.
Passados minutos, Miguel entrou e sentou-se ao meu lado.
— O que se passa? — perguntou baixinho.
— Não aguento mais — sussurrei. — Sinto-me invisível aqui. Ou pior: sinto que me odeiam.
Ele abraçou-me, mas ficou calado. Sabia que ele também sentia a pressão da família — sempre lhe disseram que devia casar com “uma rapariga do bairro”, alguém “à altura” da tradição deles.
— Queres ir embora? — perguntou ele.
Assenti com a cabeça. Saímos sem nos despedirmos de ninguém. No carro, o silêncio era pesado.
Em casa, sentei-me no sofá e olhei para as fotografias nossas na estante: viagens juntos, festas com amigos, sorrisos sinceros. Porque é que ali era tão diferente? Porque é que nunca era suficiente?
Os dias seguintes foram difíceis. Miguel tentou falar com a mãe dele, mas ela recusou-se a pedir desculpa.
— Ela não percebe as nossas coisas — disse-lhe ao telefone. — Nunca vai perceber.
Comecei a evitar os encontros familiares. Miguel ia sozinho e voltava sempre mais triste. A distância entre nós crescia sem darmos conta.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o assunto, Miguel disse:
— Não sei se consigo viver assim para sempre…
O chão fugiu-me dos pés. Tinha medo de perder o único pedaço de família que alguma vez tive.
Procurei apoio nas amigas e na psicóloga do centro de saúde. Aos poucos percebi que não podia continuar a sacrificar-me para agradar a quem nunca me aceitaria.
Um dia tomei coragem e liguei à Dona Teresa.
— Só queria dizer-lhe que tentei muito fazer parte da vossa família — disse-lhe com voz trémula — mas percebo agora que nunca serei suficiente para si. Só lhe peço que respeite o seu filho e as escolhas dele.
Ela ficou em silêncio durante longos segundos antes de desligar sem dizer nada.
Miguel ouviu tudo e abraçou-me forte.
— Tenho orgulho em ti — murmurou.
Hoje continuamos juntos, mas aprendemos a criar as nossas próprias tradições e limites. Ainda dói saber que nunca serei aceite por aquela família, mas aprendi a valorizar quem sou e o amor que construímos juntos.
Às vezes pergunto-me: quantas pessoas vivem presas à esperança de serem aceites por quem nunca lhes dará esse lugar? Será que vale mesmo a pena perdermos quem somos só para caber num molde alheio?