Entre o Amor e o Desgaste: A História de Duas Irmãs Portuguesas

— Outra vez, Sofia? Não podes simplesmente confiar que eu sei o que estou a fazer? — A voz da Mariana ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o som da chuva a bater nas janelas do nosso apartamento em Almada.

Fiquei parada, com a chávena a meio caminho dos lábios. O coração apertou-se-me no peito. Não era a primeira vez que discutíamos por causa disto, mas nunca deixava de doer. Desde pequenas que eu era a responsável, a que limpava as lágrimas da Mariana quando ela caía, a que fazia os trabalhos de casa com ela, a que mentia à mãe para a proteger das suas pequenas traquinices. Agora, adultas, parecia que nada tinha mudado — só que, em vez de agradecimento, recebia olhares de desdém.

— Eu só quero ajudar — murmurei, tentando manter a voz firme.

Ela bufou, afastando-se para junto da janela. — Ajudar? Ou controlar? Sempre achaste que sabias melhor do que eu. Achas que não percebo?

O silêncio caiu pesado entre nós. Lá fora, os carros passavam apressados, indiferentes ao drama que se desenrolava dentro de casa. Lembrei-me de quando éramos miúdas e partilhávamos o quarto minúsculo no bairro social da Trafaria. A Mariana tinha medo do escuro e eu inventava histórias para a acalmar. Agora, parecia impossível encontrar uma história que nos reconciliasse.

A verdade é que nunca tive escolha. Quando o nosso pai nos deixou, eu tinha treze anos e ela apenas oito. A mãe trabalhava turnos duplos no hospital e eu tornei-me mãe, irmã e amiga tudo ao mesmo tempo. Cresci depressa demais. E agora, aos trinta e dois anos, sentia-me exausta.

Naquela noite, depois da discussão, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, ouvindo os passos da Mariana no corredor. Perguntei-me se alguma vez ela compreenderia o peso que carreguei por nós as duas. Ou se alguma vez me perdoaria por não saber ser apenas irmã.

No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para as duas — torradas com manteiga e café forte, como sempre fazíamos ao domingo. Mas ela saiu cedo, sem dizer uma palavra. Senti um vazio estranho, como se uma parte de mim tivesse sido arrancada.

Durante dias, evitámo-nos. Eu ia trabalhar para o escritório de advogados em Lisboa e ela para o supermercado onde era gerente de caixa. À noite, cruzávamo-nos na cozinha ou na sala, mas as conversas eram curtas e frias.

Foi só quando recebi uma chamada da nossa mãe que percebi até onde tinha chegado o nosso afastamento.

— Sofia, está tudo bem com vocês? A Mariana ligou-me a chorar… Disse que se sente sufocada.

Sufocada. A palavra ficou-me presa na garganta como um espinho.

— Mãe… Eu só quero o melhor para ela — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

— Eu sei, filha. Mas às vezes temos de deixar quem amamos cair para aprenderem a levantar-se sozinhos.

As palavras da minha mãe ecoaram na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar em pequenos detalhes: como a Mariana evitava pedir-me ajuda; como ficava tensa quando eu lhe dava conselhos; como parecia mais feliz quando estava com as amigas do que comigo.

Uma noite, cheguei mais cedo a casa e ouvi-a ao telefone no quarto.

— …não aguento mais sentir que tudo o que faço está errado aos olhos dela… Sim, claro que gosto dela! Mas sinto-me sempre pequena ao lado da Sofia…

Fechei os olhos e respirei fundo. Pela primeira vez, vi-me pelos olhos da minha irmã: uma sombra constante, uma presença esmagadora. Talvez o meu amor tivesse sido demasiado pesado para ela carregar.

No fim-de-semana seguinte, decidi sair sozinha. Fui até à praia da Costa da Caparica e sentei-me na areia fria, olhando o mar cinzento. Lembrei-me de todas as vezes em que prometi à Mariana que nunca a deixaria sozinha. Mas será que estava realmente a ajudá-la? Ou estava apenas a tentar preencher o vazio dentro de mim?

Quando voltei para casa nessa noite, encontrei-a na sala, enrolada numa manta.

— Podemos falar? — perguntei, sentando-me ao lado dela.

Ela olhou-me com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Desculpa se te magoei — disse eu baixinho. — Acho que nunca soube ser só tua irmã… Sempre tive medo de te perder ou de falhar contigo.

Mariana ficou em silêncio durante um longo momento antes de responder:

— Eu sei que fazes tudo por amor… Mas preciso de espaço para errar. Preciso de sentir que confias em mim.

As lágrimas correram-me pelo rosto sem pedir licença. Pela primeira vez em muitos anos, senti-me vulnerável diante dela.

— Tenho tanto medo de ficar sozinha… — confessei.

Ela pegou na minha mão e sorriu tristemente.

— Nunca vais ficar sozinha, Sofia. Mas tens de me deixar crescer.

Naquela noite chorámos juntas pela infância perdida e pelas mágoas caladas. Pela primeira vez em muito tempo, senti esperança.

Os meses seguintes foram um exercício difícil de desapego. Aprendi a calar os conselhos não pedidos e a confiar nas escolhas da Mariana — mesmo quando discordava delas. Ela começou a partilhar mais comigo: os sonhos, os medos, as pequenas vitórias do dia-a-dia.

A nossa relação não voltou ao que era antes — tornou-se algo novo, mais honesto e equilibrado. Percebi que amar alguém não é protegê-lo de tudo, mas caminhar ao lado dele mesmo quando tropeça.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes confundimos amor com controlo? Quantas vezes sufocamos quem mais queremos proteger? Será possível amar sem querer salvar? Gostava de saber o que pensam…