“É só família, arranjas mais um hambúrguer para o teu sobrinho” – Como um pedido mudou tudo
— Ó Leonor, é só por umas semanas, prometo! O Tomás é um anjinho, nem dás por ele — a voz da minha irmã, Mariana, ecoava pelo telemóvel, misturando urgência e aquela leveza típica de quem nunca teve de lidar com as consequências dos próprios pedidos.
Suspirei, olhando para o relógio. Eram quase oito da noite, o jantar ainda por fazer e a minha cabeça já cheia das preocupações do trabalho. — Mariana, eu tenho imenso trabalho, sabes disso. E o Tomás… ele tem cinco anos! Não é só dar-lhe um hambúrguer a mais ao jantar e pronto — tentei manter a voz firme, mas ela já me conhecia demasiado bem.
— Leonor, por favor. O Pedro vai comigo para Londres, e não posso levar o miúdo. A mãe está em Albufeira com o novo namorado e o pai… bem, sabes como é o pai. Não tenho mais ninguém. És a minha irmã! — ouvi um soluço abafado do outro lado. Mariana sempre soube jogar com as emoções.
A verdade é que sempre fui a irmã responsável. A que ficava em casa a estudar enquanto ela saía à noite. A que ajudava a mãe quando o pai desaparecia durante dias. A que nunca dizia não.
— Está bem — cedi, sentindo já o peso da decisão. — Mas só duas semanas, Mariana. Duas semanas.
No dia seguinte, o Tomás chegou com uma mochila azul às costas e um sorriso tímido. Mariana mal entrou em casa, largou-o no corredor e deu-me um beijo apressado na testa.
— És uma santa, Leonor! Prometo trazer-te um presente de Londres! — e saiu porta fora antes que eu pudesse protestar.
O Tomás olhou para mim com aqueles olhos grandes e castanhos, tão parecidos com os da Mariana quando era pequena. — Tia Leonor, posso ver desenhos animados?
Sorri-lhe, tentando esconder o nervosismo. — Podes, mas primeiro vamos arrumar as tuas coisas, está bem?
As primeiras noites correram bem. O Tomás era realmente um miúdo doce, mas tinha energia de sobra. Entre o trabalho remoto, as reuniões intermináveis e as birras por causa dos legumes ao jantar, comecei a sentir-me esgotada.
Na terceira noite, enquanto tentava convencer o Tomás a tomar banho, recebi uma mensagem do meu chefe: «Preciso do relatório até amanhã às 9h.» Senti o coração apertar. O Tomás gritava do quarto: — Não quero banho! Quero a mãe!
Sentei-me no chão da casa de banho e tapei os ouvidos por um segundo. Como é que a Mariana fazia parecer tudo tão fácil? Porque é que eu tinha de ser sempre a responsável?
No fim de semana seguinte, a minha mãe apareceu sem avisar. Entrou em casa com sacos de compras e aquele ar crítico que sempre me acompanhou desde criança.
— Então, Leonor? Já viste como está desarrumada esta sala? E o miúdo anda descalço! — disse ela, largando os sacos na bancada.
— Mãe, estou a fazer o melhor que posso. Tenho trabalho, tenho de cuidar do Tomás… — tentei explicar.
Ela olhou-me de cima a baixo e suspirou. — Sempre foste tão dramática. A tua irmã também tem problemas e não faz este teatro todo.
Engoli em seco. Era sempre assim: eu era a exagerada, a queixosa. Mariana era a aventureira, a despreocupada.
Na segunda semana, comecei a notar mudanças no Tomás. Estava mais calado, agarrava-se ao meu braço quando íamos ao parque e perguntava várias vezes quando é que a mãe voltava.
— Tia Leonor, porque é que a mãe não me liga? — perguntou-me uma noite, já deitado na cama.
Sentei-me ao lado dele e passei-lhe a mão pelo cabelo.
— A mãe está ocupada, mas vai ligar-te amanhã, prometo — menti-lhe. Na verdade, Mariana só enviava mensagens rápidas: «Está tudo bem?» ou «O Tomás comeu?»
No final das duas semanas prometidas, liguei à Mariana.
— Então? Quando é que vens buscar o Tomás? Ele tem saudades tuas.
Do outro lado ouvi barulho de copos e música alta.
— Leonor… olha… houve um problema com o voo… talvez só consiga voltar para a semana. Não podes ficar mais uns dias com ele? — disse ela, quase sem esperar resposta.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Mariana, isto não é justo! Disseste duas semanas! Eu tenho vida própria!
Ela suspirou.
— É só família, Leonor… arranjas mais um hambúrguer para o teu sobrinho. Não faças disso um drama.
Desliguei sem responder. Senti as lágrimas nos olhos. Porque é que ser família significava abdicar sempre de mim?
Os dias seguintes foram uma mistura de cansaço e culpa. O Tomás começou a fazer xixi na cama outra vez. Liguei à minha mãe à procura de apoio.
— Mãe, acho que o Tomás está mesmo em baixo… não sei se estou a fazer isto bem…
Ela respondeu seca:
— Não dramatizes. Os miúdos são assim mesmo. E tu sempre foste demasiado sensível.
Comecei a evitar os telefonemas da Mariana. O Tomás perguntava cada vez mais vezes pela mãe. Uma noite, depois de adormecê-lo com dificuldade, sentei-me na varanda e chorei baixinho. Senti-me sozinha como nunca antes.
Na terceira semana, recebi uma mensagem do pai do Tomás: «Posso passar aí para ver o miúdo?» Hesitei antes de responder. O pai da Mariana era ausente, mas talvez fosse bom para o Tomás vê-lo.
Quando ele chegou, trazia um saco de brinquedos baratos e um sorriso forçado.
— Olá Leonor… então? Como está o rapaz?
O Tomás correu para ele e abraçou-o com força. Fiquei ali parada, sem saber se devia sentir alívio ou revolta.
Depois de meia hora de conversa fiada, ele levantou-se para sair.
— Olha… se precisares de ajuda… avisa — disse ele antes de sair pela porta. Mas sabia que era só conversa.
Finalmente, ao fim de quase um mês, Mariana apareceu em casa como se nada fosse.
— Então? O meu menino portou-se bem? — perguntou ela com aquele sorriso despreocupado.
Olhei para ela durante uns segundos antes de responder.
— Portou-se melhor do que tu merecias — disse-lhe baixinho.
Ela riu-se e abraçou-me rapidamente.
— És mesmo dramática, Leonor! Vá lá… vamos jantar fora hoje! Eu pago!
Durante o jantar, observei-a rir-se com o Tomás como se nada tivesse acontecido. Senti uma mistura de inveja e tristeza. Porque é que eu nunca conseguia ser assim leve? Porque é que tudo me pesava tanto?
Quando voltámos para casa, sentei-me na cama e olhei para o teto escuro do quarto. Senti-me esgotada mas também estranhamente aliviada por ter sobrevivido àquele mês caótico.
No dia seguinte acordei cedo e fui correr junto ao rio Tejo. O ar fresco ajudou-me a pensar em tudo o que tinha acontecido.
Será que ser família significa abdicar sempre dos nossos limites? Ou será que temos direito a dizer “não”, mesmo quando todos esperam que digamos “sim”?
E vocês? Até onde iriam por alguém da vossa família? Onde traçam a linha entre ajudar e perder-se a si próprios?