A Escolha da Minha Filha: Entre o Amor e o Sacrifício de uma Família Portuguesa
— Mãe, preciso falar contigo. — A voz da Mariana tremia, os olhos fugiam dos meus. Era uma tarde húmida de novembro, e o cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a ansiedade que pairava na cozinha. O meu coração acelerou, como se já soubesse que nada seria igual depois daquele momento.
— Diz, filha. — Tentei sorrir, mas o medo já me apertava o peito.
— Estou grávida. — As palavras caíram como pedras. — E… vou viver com o Rui.
O silêncio foi tão pesado que quase me afoguei nele. Senti as pernas fraquejarem, as mãos suadas agarradas à borda da mesa. Mariana tinha apenas dezassete anos. Rui era um rapaz simpático, mas ainda mais novo do que ela, sem trabalho fixo, a viver com os pais num T2 em Almada.
— Mariana, tu não sabes o que estás a fazer — sussurrei, tentando controlar as lágrimas. — A tua vida vai mudar para sempre. E a nossa também.
Ela olhou-me com aquela teimosia que sempre teve desde pequena. — Eu amo-o, mãe. Quero esta família. Não me peças para desistir.
O meu marido, António, chegou nesse instante. O olhar dele cruzou-se com o meu e percebeu logo que algo grave se passava. Quando Mariana repetiu a notícia, ele explodiu:
— Isto é uma irresponsabilidade! Achas que a vida é fácil? Quem é que vai pagar as contas? O Rui? Ele nem trabalho tem!
Mariana chorou. Eu chorei. António saiu porta fora, batendo com força. E assim começou o nosso inferno.
Nos dias seguintes, tentei ser racional. Falei com a escola, procurei apoio social, tentei convencer Mariana a terminar os estudos antes de pensar em sair de casa. Mas ela estava decidida. Rui apareceu cá em casa, nervoso, prometendo que ia arranjar emprego e cuidar da Mariana e do bebé.
— Dona Isabel, eu juro que não vou falhar com a sua filha — disse-me ele, olhos baixos.
Quis acreditar nele. Quis acreditar que tudo se ia resolver. Mas as contas começaram a acumular-se: consultas no privado porque o centro de saúde estava lotado; fraldas e roupas de bebé; ajudas ao casal porque nenhum deles conseguia trabalho estável. António ficou amargo, distante. Passava horas calado à mesa do jantar ou saía para o café sem dizer palavra.
— Isto não é vida — murmurava ele à noite, quando pensava que eu já dormia.
A minha mãe dizia-me para ser dura:
— Eles fizeram a escolha deles, Isabel. Agora que se desenrasquem! Tu não podes carregar o mundo às costas.
Mas como podia eu virar as costas à minha filha? Lembrava-me dela em pequena, deitada no meu colo depois de um pesadelo, agarrada ao meu pescoço como se eu fosse o seu porto seguro. Agora era ela quem precisava de mim — e eu não sabia se tinha forças para ser esse porto outra vez.
O nascimento da Leonor trouxe alguma alegria à casa. Mariana estava exausta mas feliz; Rui esforçava-se para ser pai, mas as dificuldades eram muitas. António quase não pegava na neta ao colo. Dizia que não queria apegar-se para depois sofrer ainda mais.
As discussões tornaram-se rotina:
— Não podemos continuar a pagar tudo! — gritava António.
— Queres que a tua filha passe fome? — respondia eu, já sem paciência.
— Quero que cresça! Que aprenda! Que perceba que a vida não é feita de sonhos!
Mariana ouvia tudo em silêncio, os olhos vermelhos de chorar à noite no quarto ao lado do nosso.
Um dia, Rui perdeu mais um emprego temporário e veio pedir-nos dinheiro para pagar a renda do quarto onde viviam.
— Eu prometo que é só desta vez… — disse ele, envergonhado.
António explodiu:
— Basta! Não somos banco de ninguém! Se não conseguem viver sozinhos, voltem para casa!
Mariana recusou. Disse que preferia dormir na rua a voltar atrás na sua decisão.
Nessa noite, sentei-me sozinha na sala escura e chorei como nunca antes. Senti-me culpada por tudo: por não ter sido uma mãe mais dura; por não ter protegido Mariana das ilusões do amor adolescente; por não conseguir manter a família unida.
Os meses passaram e as coisas pioraram antes de melhorarem. António adoeceu — um enfarte leve, mas suficiente para nos assustar a todos. Mariana veio todos os dias ajudar em casa; Rui arranjou finalmente um trabalho fixo numa oficina; Leonor começou a andar e a rir-se alto pela casa.
Aos poucos, fomos reconstruindo alguma paz. Mas nada voltou a ser como antes. António nunca perdoou totalmente Mariana; eu nunca consegui deixar de sentir aquele peso no peito cada vez que olhava para ela e via tanto sofrimento nos olhos da minha menina.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria sido melhor deixá-la cair para aprender? Ou fiz bem em sacrificar tudo pelo amor de mãe?
Às vezes dou por mim a olhar para Leonor a brincar no tapete da sala e penso: “Valeu a pena todo este sofrimento? Até onde deve ir uma mãe para proteger os filhos dos próprios erros?”
E vocês? O que fariam no meu lugar?