Dividindo Prateleiras, Dividindo Vidas: Um Desabafo de Nora Portuguesa
— Não acredito no que estás a sugerir, Inês! — A voz da Dona Maria ecoou pela cozinha, carregada de indignação. — Dividir as prateleiras do frigorífico? Mas isto agora é o quê, um quartel?
Fiquei ali, parada, com a mão ainda pousada na porta do frigorífico, sentindo o rubor subir-me ao rosto. O Rui, como sempre, fingiu que não era nada com ele e continuou a mexer no telemóvel. A Leonor, alheia ao drama dos adultos, brincava com as panelas no chão.
Respirei fundo. — Mãe, não é nada disso. Só pensei que assim seria mais fácil mantermos tudo organizado. Às vezes não sei o que é de quem e já aconteceu de deitar fora comida que afinal era tua…
— Quando eu vivia no bairro da Graça, éramos sete em casa e nunca ninguém precisou dessas modernices! — cortou ela, batendo com força a porta do frigorífico. — Nem quando estive no liceu e dividia casa com outras raparigas. Isto são manias tuas.
Senti-me pequena. Tão pequena quanto me sentia sempre que tentava propor alguma mudança naquela casa. Mas não era só sobre as prateleiras. Era sobre tudo: o espaço, as regras, a minha voz.
Vivo nesta casa há quatro anos. Quatro anos desde que o Rui perdeu o emprego na construção civil e tivemos de vender o nosso T1 em Odivelas. Viemos para aqui porque “família é para isso mesmo”, disse a Dona Maria na altura. E eu acreditei. Mas ninguém me avisou que família também pode ser uma prisão.
A nossa filha nasceu dois anos depois. A Leonor trouxe alegria, mas também mais tensão. A Dona Maria adora-a, mas faz questão de me lembrar todos os dias que “no meu tempo não se fazia assim” ou “deixa estar, eu trato disso”. Sinto-me mãe só pela metade.
O Rui trabalha agora numa oficina de automóveis. Ganha pouco mais do que o salário mínimo. Eu sou licenciada em Ciências da Informação, mas trabalho? Só consegui uns biscates na biblioteca municipal, pagos à hora e sem contrato. Já pensei em emigrar, mas como deixar tudo para trás? E a Leonor?
A rotina é sempre igual: acordar cedo, preparar o pequeno-almoço para todos (porque Dona Maria faz questão de comer pão fresco), vestir a Leonor, correr para a creche (que só conseguimos graças ao apoio social), voltar para casa e ouvir Dona Maria reclamar do preço da luz ou do barulho dos vizinhos.
Às vezes penso que ela sente prazer em me contrariar. Como naquele dia em que comprei iogurtes de soja para mim e ela fez questão de dizer alto e bom som: — Isso não alimenta ninguém! No meu tempo era leite das vacas do meu pai!
O Rui raramente toma partido. Diz que não quer “confusões” e que “a mãe já é velha, deixa-a estar”. Mas eu sinto-me sozinha nesta luta diária por um pouco de respeito.
A gota de água foi mesmo hoje, com as prateleiras do frigorífico. Só queria evitar discussões sobre comida desaparecida ou estragada. Mas para Dona Maria foi como se eu tivesse sugerido dividir a casa ao meio.
— Se não estás bem aqui, podes sempre ir para casa dos teus pais! — atirou ela, olhando-me de cima a baixo.
— Os meus pais vivem em Santarém e nem espaço têm para eles próprios… — murmurei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
— Então aguenta-te! — respondeu ela, virando-me as costas.
Fiquei ali parada, sentindo o peso da humilhação. A Leonor olhou para mim com aqueles olhos grandes e inocentes e eu sorri-lhe, tentando esconder a dor.
À noite, quando finalmente consegui deitar a Leonor e fechar-me no quarto com o Rui, desabei:
— Não aguento mais isto. Sinto-me uma intrusa na minha própria casa!
O Rui suspirou. — Inês, por favor… Não compliques. A minha mãe é assim mesmo. Já sabes como ela é.
— E eu? Não conto? Não tenho direito a um pouco de paz?
Ele encolheu os ombros e virou-se para o lado. Senti-me mais sozinha do que nunca.
No dia seguinte tentei ignorar Dona Maria. Fui buscar a Leonor à creche e levei-a ao parque. Lá encontrei a Carla, uma vizinha que também vive com os sogros.
— Olha que não és a única — disse ela, abanando a cabeça. — Aqui no bairro quase toda a gente vive assim. Ou é falta de dinheiro ou porque os avós ajudam com os miúdos… Mas olha que eu já pus limites! O meu sogro sabe que não mexe nas minhas coisas.
Senti inveja daquela segurança. Porque é que eu não conseguia impor-me?
Quando voltei para casa, Dona Maria estava sentada à mesa da cozinha, a tricotar.
— Já voltaste? — perguntou sem levantar os olhos.
— Já — respondi secamente.
— Fiz sopa para todos. Espero que gostes — disse ela num tom estranho, quase conciliador.
Sentei-me à mesa e servi um prato para mim e outro para a Leonor. O silêncio era pesado.
— Sabes… — começou ela de repente — Eu também tive uma sogra difícil. A mãe do teu sogro era pior do que eu.
Olhei para ela surpreendida.
— Sempre achei que nunca ia ser como ela… Mas às vezes dou por mim a repetir as mesmas coisas.
Não soube o que dizer. Pela primeira vez vi fragilidade nos olhos dela.
— Não quero ser um peso para ti, Inês — disse baixinho.
Engoli em seco. — Só queria sentir que esta casa também é minha…
Ela suspirou. — Talvez possamos tentar… dividir as prateleiras.
Sorri-lhe timidamente. Talvez houvesse esperança.
Mas sei que amanhã tudo pode voltar ao mesmo. Que cada pequena vitória pode ser anulada por uma palavra torta ou um gesto impensado.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem assim? Quantas engolem em seco todos os dias para manter a paz? Será este o preço da família?