Sábado, Quando Finalmente Falei: A História de Me Encontrar

— Outra vez? — pensei, enquanto ouvia o som da campainha ecoar pela casa. O relógio mal marcava nove da manhã de sábado. O Rui ainda dormia, mas eu já estava de pé, a tentar organizar a cozinha depois de uma semana de trabalho exaustiva. O cheiro do café mal tinha invadido o ar quando ouvi a voz da minha sogra, Dona Amélia, atravessar a porta:
— Filha, abre lá! Está frio cá fora!
O meu coração apertou-se. Não era a primeira vez que vinham sem avisar, mas cada visita parecia um teste à minha paciência e à minha sanidade. Abri a porta com um sorriso forçado. O sogro, Senhor Manuel, entrou logo atrás dela, com aquele olhar crítico que nunca me largava.
— Ainda de pijama? — comentou ele, olhando-me de cima a baixo.
— Bom dia, Dona Amélia, Senhor Manuel. Não estava à espera… — tentei justificar-me, mas ela já estava na cozinha, a inspeccionar tudo como se fosse dela.
— Uma casa precisa de ordem, filha. E o Rui? Ainda na cama? — perguntou, com aquele tom que misturava preocupação e julgamento.
Senti o sangue ferver-me nas veias. O Rui nunca era alvo das críticas. Era sempre eu: a nora que devia ser perfeita, a esposa que devia antecipar todas as necessidades, a mulher que devia sorrir mesmo quando só lhe apetecia chorar.

Enquanto Dona Amélia começava a arrumar as minhas panelas — sempre no sítio errado — ouvi o Rui descer as escadas, ainda meio zonzo.
— Mãe? Pai? O que fazem aqui tão cedo? — perguntou ele, esfregando os olhos.
— Viemos ver como estavam as coisas. A tua mulher precisa de ajuda com a casa — respondeu ela, lançando-me um olhar de lado.

O Rui encolheu os ombros e foi sentar-se à mesa como se nada fosse. Eu queria gritar, queria dizer-lhe para me defender, para dizer à mãe que aquela era a minha casa também. Mas calei-me, como sempre fazia.

Ao longo dos anos, fui-me apagando devagarinho. Quando casei com o Rui, pensei que ia construir uma vida a dois, mas rapidamente percebi que havia sempre mais alguém na nossa relação: os sogros, as expectativas deles, os comentários sobre como eu cozinhava ou limpava ou até como me vestia.

Lembro-me do primeiro Natal juntos. Dona Amélia trouxe o bacalhau já cozinhado porque “não confiava” no meu jeito para a cozinha. O Rui riu-se e disse que era melhor assim para evitar desastres. Ri-me também, mas por dentro chorei.

Os anos passaram e fui aceitando pequenas derrotas: deixei de convidar as minhas amigas porque Dona Amélia não gostava de barulho; deixei de usar batom vermelho porque o Senhor Manuel dizia que era coisa de mulher “leviana”; deixei de sair ao sábado porque eles podiam aparecer a qualquer momento.

A minha mãe dizia-me:
— Filha, tens de te impor!
Mas como? Quando tentava falar com o Rui sobre isso, ele dizia:
— São os meus pais… Não posso fazer nada. Eles são assim.

Naquela manhã de sábado, enquanto Dona Amélia criticava o pó nos móveis e o Senhor Manuel perguntava porque é que ainda não tínhamos filhos — “já não vão para novos” — senti uma raiva antiga crescer dentro de mim.

— E então, Ana? Quando é que nos dás um neto? — insistiu ele.

Olhei para o Rui à espera de apoio. Ele desviou o olhar para o telemóvel.

Foi aí que me ouvi falar pela primeira vez em muito tempo:

— Talvez quando sentir que esta casa é minha também — disse eu, com a voz trémula mas firme.

O silêncio caiu como uma pedra no meio da sala. Dona Amélia parou de limpar e olhou-me como se eu tivesse dito um disparate.

— Como assim? — perguntou ela.

— Sinto-me uma estranha aqui dentro. Não posso respirar sem sentir que estou a ser avaliada. Não posso tomar decisões sem medo do vosso julgamento. E tu, Rui… nunca me defendes — virei-me para ele, com lágrimas nos olhos.

O Rui levantou-se devagar:

— Ana… não faças isto agora… — murmurou ele.

— Agora? Quando então? Quando já não aguentar mais? Quando desaparecer completamente? — gritei eu, incapaz de controlar as emoções.

Dona Amélia tentou acalmar-me:

— Filha, só queremos ajudar…

— Não quero ajuda! Quero respeito! Quero sentir que pertenço à minha própria vida! — respondi, sentindo finalmente o peso das palavras libertar-se do peito.

O Senhor Manuel abanou a cabeça:

— As mulheres de hoje já não sabem o seu lugar…

— Pois não sei mesmo! E ainda bem! — respondi-lhe, surpreendendo-me com a minha coragem.

O silêncio voltou a instalar-se. Senti-me exposta, vulnerável… mas estranhamente livre.

Os sogros saíram pouco depois, ofendidos e em silêncio. O Rui ficou parado na cozinha sem saber o que dizer.

— Porque é que nunca me defendes? — perguntei-lhe baixinho.

Ele encolheu os ombros:

— Não quero problemas…

— Mas eu sou tua mulher! Não vês que estou a desaparecer? Que já nem sei quem sou?

Ele ficou calado. Fui para o quarto e chorei até não ter mais lágrimas.

Nesse dia não fiz almoço. Não limpei a casa. Não sorri para ninguém.

À noite, sentei-me no sofá sozinha e olhei para as minhas mãos vazias. Lembrei-me da Ana que sonhava viajar pelo mundo, da Ana que adorava dançar até de madrugada com as amigas, da Ana que ria alto sem medo do julgamento alheio.

Onde é que ela ficou?

O Rui entrou na sala e sentou-se ao meu lado:

— Desculpa… Eu devia ter feito mais…

Olhei para ele e vi sinceridade nos olhos dele pela primeira vez em muito tempo.

— Eu preciso de ti do meu lado. Preciso sentir que somos uma equipa…

Ele pegou na minha mão:

— Prometo tentar…

Não sei se vai ser suficiente. Não sei se consigo voltar a ser quem era antes. Mas naquele sábado comecei finalmente a falar por mim.

Agora pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas nas suas próprias casas? Quantas vezes deixamos de ser nós mesmas para agradar aos outros? Será que algum dia vamos aprender a dizer basta antes de nos perdermos completamente?