Nunca Fui Suficientemente Boa Para Tiago: Verdades Sobre o Amor e as Diferenças Sociais
— Não percebo o que vês nela, Tiago! — A voz da Dona Lurdes ecoou pela sala, cortante como uma faca. Eu estava ali, sentada no sofá de veludo azul, as mãos trémulas a apertar a chávena de chá que ela me oferecera sem olhar nos meus olhos. O Tiago, ao meu lado, respirava fundo, tentando manter a calma, mas eu sentia-lhe o pulso acelerado.
O relógio antigo marcava as seis da tarde, mas o tempo parecia suspenso naquele instante. O cheiro a sopa de legumes misturava-se com o perfume forte da Dona Lurdes, e eu sentia-me cada vez mais pequena naquela casa enorme, cheia de móveis antigos e retratos de família. O Tiago olhou para mim, como quem pede desculpa sem palavras.
— Mãe, por favor… — murmurou ele, mas ela nem lhe deu ouvidos.
— Tu mereces alguém do teu nível. Uma rapariga com futuro, com família decente! — continuou ela, agora olhando-me diretamente. Senti o rosto a arder. Sabia que não era bem-vinda ali, mas ouvir aquelas palavras em voz alta foi como levar um murro no estômago.
O Tiago apertou-me a mão debaixo da mesa. — A Ana é tudo para mim. Não me interessa o que ela tem ou deixa de ter.
A Dona Lurdes bufou e saiu da sala, deixando-nos num silêncio pesado. O pai do Tiago, o senhor António, nem sequer levantou os olhos do jornal. Era como se eu fosse invisível.
Naquela noite, quando saímos dali, o Tiago tentou animar-me. — Não ligues à minha mãe. Ela é assim com toda a gente…
Mas eu sabia que não era verdade. A irmã dele, a Marta, tinha levado um namorado lá a casa semanas antes e fora recebida com sorrisos e bolinhos acabados de fazer. Eu era diferente. Vinha de um bairro simples em Almada, filha de uma empregada de limpeza e de um pai ausente que nunca conheci. A minha mãe fez tudo por mim, mas nunca tivemos muito. E agora ali estava eu, apaixonada por um rapaz de uma família tradicional de Lisboa, onde tudo parecia perfeito à superfície.
Os meses passaram e cada visita à casa do Tiago era uma prova de resistência. A Dona Lurdes fazia questão de me lembrar do meu lugar: comentários sobre a minha roupa simples, perguntas sobre o “meu futuro”, insinuações sobre o meu trabalho como assistente numa loja de roupa.
— Já pensaste em estudar mais? — perguntava ela com um sorriso falso. — O Tiago vai ser advogado…
Eu respondia sempre com educação, mas por dentro sentia-me cada vez mais insegura. Comecei a duvidar de mim própria. Será que o Tiago merecia mesmo alguém melhor? Será que eu estava a arruinar-lhe o futuro?
A pressão começou a afetar-nos. Discutíamos por coisas pequenas: ele queria sair com os amigos dele do colégio privado; eu sentia-me deslocada entre conversas sobre viagens ao estrangeiro e investimentos imobiliários. Uma noite, depois de uma dessas discussões, desatei a chorar na casa de banho do meu pequeno apartamento.
A minha mãe ouviu-me e entrou devagarinho.
— Ana, filha… — sentou-se ao meu lado no chão frio. — Não deixes ninguém fazer-te sentir menos do que és.
Mas era difícil acreditar nela quando tudo à minha volta dizia o contrário.
O Tiago tentou compensar: levou-me a jantar fora, ofereceu-me flores, fez promessas de que tudo ia correr bem. Mas eu sentia-o cada vez mais dividido entre mim e a família dele.
No Natal desse ano, fui convidada para passar a consoada com eles. Achei que era um sinal de aceitação. Vesti o meu melhor vestido — simples mas elegante — e levei um bolo feito pela minha mãe.
Quando cheguei, percebi logo que não era bem-vinda. A Dona Lurdes recebeu-me com um “Ah… vieste mesmo” e colocou o meu bolo num canto da cozinha sem sequer provar. Durante o jantar, as conversas giravam à volta de viagens ao Douro e negócios de família. Eu tentava sorrir e participar, mas sentia-me sempre deslocada.
Depois do jantar, ouvi a Marta sussurrar para a mãe:
— Achas mesmo que isto vai durar?
A Dona Lurdes respondeu baixo, mas ouvi perfeitamente:
— O Tiago vai perceber que merece mais cedo ou tarde.
Saí para o quintal para respirar fundo. O Tiago veio atrás de mim.
— Desculpa… — disse ele, abraçando-me.
— Não sei se aguento mais isto — confessei-lhe. — Sinto que nunca vou ser suficiente para eles… nem para ti.
Ele olhou-me nos olhos e disse:
— És suficiente para mim. Só preciso que acredites nisso também.
Tentei acreditar nele. Mas as dúvidas continuavam a corroer-me por dentro.
No início do ano seguinte, perdi o emprego na loja devido a cortes orçamentais. Fiquei devastada. O Tiago tentou ajudar-me a arranjar trabalho através dos contactos da família dele, mas eu recusei. Não queria dever-lhes nada.
As discussões aumentaram. Ele dizia que eu era orgulhosa demais; eu sentia que ele não compreendia o quanto era difícil para mim depender deles.
Uma noite, depois de uma discussão particularmente dura, ele saiu porta fora sem dizer nada. Fiquei sozinha no silêncio do meu quarto, a olhar para as paredes nuas e a sentir-me mais sozinha do que nunca.
Dias depois, recebi uma mensagem dele:
“Preciso de pensar. Amo-te, mas isto está a ser demasiado difícil para nós os dois.”
O mundo desabou à minha volta. Passei dias sem sair da cama. A minha mãe fazia tudo para me animar: preparava os meus pratos preferidos, sentava-se ao meu lado em silêncio quando eu não tinha forças para falar.
Um mês depois, o Tiago apareceu à porta do meu prédio. Trazia flores na mão e olhos vermelhos de tanto chorar.
— Não consigo viver sem ti — disse ele assim que abri a porta.
Chorámos juntos no corredor frio. Ele pediu-me desculpa por não ter sido mais forte perante a família dele; eu pedi desculpa por não ter confiado mais nele.
Decidimos recomeçar longe dali. Arranjámos um pequeno apartamento em Setúbal e começámos do zero. Ele arranjou trabalho num escritório local; eu consegui emprego numa papelaria.
A família dele cortou relações durante meses. Só passado quase um ano é que recebemos uma mensagem da Dona Lurdes: “Sejam felizes.” Nada mais.
A vida nunca foi fácil para nós. Tivemos dificuldades financeiras; discutimos muitas vezes; houve dias em que pensei em desistir outra vez. Mas aprendemos a apoiar-nos um no outro como nunca antes.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas pessoas desistem do amor por causa das diferenças sociais? Quantas Anas e quantos Tiagos há por aí a lutar contra preconceitos antigos? Será que algum dia vamos conseguir viver num país onde o amor vale mais do que o apelido ou o saldo bancário?