Entre o Amor e o Remorso: A História de Uma Mãe e Uma Filha em Lisboa

— Não percebes mesmo nada do que eu preciso, pois não, mãe? — A voz da Inês ecoou pela cozinha, cortando o ar como uma faca. Fiquei ali, parada, com as mãos ainda húmidas do detergente, a olhar para ela como se fosse uma estranha. O cheiro do café queimado misturava-se com a tensão que pairava entre nós.

Queria responder-lhe, dizer-lhe que fazia tudo por ela, que cada gesto meu era uma tentativa de a proteger do mundo — mas as palavras ficaram presas na garganta. Vi nos olhos dela uma raiva antiga, misturada com mágoa. Era como se cada discussão nossa fosse apenas mais um tijolo no muro que nos separava.

A Inês sempre foi uma rapariga sensível, mas determinada. Lembro-me dela em pequena, a correr pelos corredores do nosso apartamento em Benfica, os cabelos castanhos soltos ao vento, a rir-se das minhas tentativas desajeitadas de a pentear antes da escola. O pai dela, o António, dizia sempre: “Deixa-a ser livre, Maria.” Mas eu só queria que ela estivesse segura.

Quando o António morreu — tão cedo, tão de repente — senti-me sozinha no mundo. A Inês tinha apenas dezasseis anos e eu tentei ser mãe e pai ao mesmo tempo. Talvez tenha sido aí que comecei a errar. Tornei-me demasiado exigente, demasiado presente. Queria saber tudo: onde ia, com quem estava, se já tinha estudado para os exames. Ela afastou-se. E eu não soube como puxá-la de volta.

Os anos passaram e a distância entre nós cresceu. Quando ela conheceu o Miguel — agora seu marido — vi nela uma felicidade que já não via há muito tempo. Mas também vi outra coisa: um afastamento ainda maior. Os pais do Miguel eram diferentes de mim. Tinham dinheiro, tempo e uma casa grande em Cascais onde recebiam a Inês como se fosse uma princesa. Eu sentia-me pequena ao pé deles, como se tudo o que eu tivesse para oferecer à minha filha fosse pouco.

— Eles ajudam-me sem julgar — atirou ela uma vez, quando tentei aconselhá-la sobre o trabalho. — Tu só sabes criticar.

Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante semanas. Será que sempre fui assim? Será que nunca soube ouvir? Comecei a duvidar de mim própria. Passei noites em claro a pensar nas nossas conversas, a tentar lembrar-me de momentos felizes que pudessem compensar todos os gritos e portas batidas.

A última discussão foi há três dias. A Inês ligou-me a chorar porque o Miguel tinha perdido o emprego e estavam preocupados com as contas da casa. Ofereci-lhe algum dinheiro das minhas poupanças — não era muito, mas era tudo o que podia dar. Ela recusou.

— Não preciso da tua caridade — disse ela, seca.

Senti-me humilhada. Não era caridade; era amor de mãe. Mas percebi que ela já não via as coisas assim. Fiquei sentada na sala durante horas, a olhar para as fotografias antigas: Inês no seu primeiro dia de escola; Inês com o António na praia da Caparica; Inês a soprar as velas do bolo dos 18 anos. Onde é que nos perdemos?

No dia seguinte fui ao mercado da Ribeira comprar flores — as preferidas dela, lírios brancos — e fui até à casa dela em Campo de Ourique. Toquei à campainha com o coração aos pulos. O Miguel abriu a porta; estava abatido, mas sorriu ao ver-me.

— A Inês está no quarto — disse ele baixinho.

Entrei devagarinho e bati à porta do quarto dela.

— Inês? Posso entrar?

Ouvi um suspiro do outro lado.

— Faz como quiseres — respondeu ela.

Sentei-me na beira da cama e entreguei-lhe as flores. Ela olhou para mim com olhos vermelhos de tanto chorar.

— Porque é que vieste?

— Porque és minha filha — respondi, tentando segurar as lágrimas. — E porque não suporto ver-te sofrer sozinha.

Ela virou-se para o lado oposto e ficou em silêncio durante um tempo que me pareceu uma eternidade.

— Às vezes sinto que nunca me ouviste verdadeiramente — murmurou ela por fim. — Sempre quiseste controlar tudo… até agora.

Senti um aperto no peito. Quis pedir desculpa por todos os erros, por todas as vezes que fui dura demais ou ausente demais. Mas as palavras saíram-me aos soluços:

— Eu só queria proteger-te…

Ela olhou para mim finalmente, os olhos brilhantes de lágrimas.

— Eu sei… mas agora preciso que confies em mim. Que me deixes cair se for preciso…

Ficámos ali sentadas em silêncio, mãe e filha separadas por um abismo de mágoas antigas e amor mal expressado. O Miguel entrou com chá quente e pousou-o na mesa-de-cabeceira sem dizer nada. Senti-me grata por ele estar ali; talvez ele conseguisse dar-lhe o apoio que eu nunca consegui dar.

Nessa noite voltei para casa sozinha. Sentei-me à janela do meu pequeno apartamento e olhei para as luzes da cidade. Senti-me velha e cansada, mas também determinada a não desistir da minha filha.

No dia seguinte escrevi-lhe uma carta. Não sabia se ela ia ler, mas precisava de lhe dizer tudo aquilo que nunca consegui dizer cara a cara:

“Minha querida Inês,
Sei que falhei muitas vezes contigo. Sei que quis controlar-te quando devia ter-te dado asas para voar. Mas acredita: tudo o que fiz foi por amor. Não sei se algum dia conseguirás perdoar-me ou confiar em mim como antes… mas estarei sempre aqui para ti.
Com amor,
Mãe”

Deixei a carta na caixa do correio dela e voltei para casa com o coração apertado.

Passaram-se dias sem resposta. Cada vez que o telefone tocava, saltava do sofá cheia de esperança — mas era sempre alguém do banco ou da farmácia. Comecei a pensar se não seria melhor desistir, deixar a Inês viver a vida dela sem a minha sombra.

Mas numa tarde chuvosa de domingo ouvi bater à porta. Era ela — encharcada da chuva, com os olhos vermelhos mas um sorriso tímido nos lábios.

— Li a tua carta — disse apenas.

Abraçámo-nos ali mesmo no corredor, sem palavras nem promessas vãs. Só um abraço apertado, cheio de saudade e vontade de recomeçar.

Agora escrevo esta história sem saber como será o nosso futuro. Sei apenas que amar alguém não é suficiente; é preciso aprender a ouvir, a aceitar as escolhas dos outros mesmo quando nos magoam.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mães e filhas vivem presas neste ciclo de amor e mágoa? Será possível recomeçar quando já se perdeu tanto? E vocês… já sentiram este medo de perder quem mais amam?