Silêncio Entre Nós: O Diário de uma Mãe Portuguesa Dividida Entre a Lealdade e a Verdade

— Não me venhas com desculpas, Mariana! — gritei, sentindo a voz tremer mais de raiva do que de tristeza. O telefone escorregava-me das mãos suadas, enquanto ouvia o silêncio pesado do outro lado. — Já passaram três meses desde o teu casamento e nem uma visita, nem um telefonema decente! O que é que se passa contigo?

A resposta dela foi um sussurro, quase imperceptível:

— Mãe, agora tenho outra vida…

Desligou. Fiquei ali, sentada na cozinha fria do meu apartamento em Coimbra, a olhar para o vazio. O relógio marcava quase meia-noite. Oiço o tique-taque como se fosse o eco do tempo que perdi com ela. Mariana sempre foi o meu orgulho, a minha menina de olhos vivos e sonhos grandes. E agora, parecia-me uma estranha.

Naquela noite não dormi. Revirei-me na cama, a pensar em tudo o que podia ter feito de diferente. O pai dela morreu cedo, e fui mãe e pai ao mesmo tempo. Trabalhei horas extras no hospital para lhe dar tudo. Será que exigi demais? Será que a pressionei a ser perfeita?

No dia seguinte, tomei uma decisão. Ia vê-la, nem que tivesse de atravessar metade do país. Liguei-lhe outra vez, mas não atendeu. Mandei mensagem: “Vou aí no sábado.” Não respondeu.

Sábado de manhã, meti-me no comboio para Viseu e depois apanhei o autocarro para a aldeia de São Martinho das Moitas. Chovia miudinho quando cheguei. A aldeia parecia parada no tempo: casas de pedra, ruas estreitas, cheiro a terra molhada. O coração batia-me descompassado enquanto subia o caminho até à casa dela.

Bati à porta. Ouvi passos arrastados e Mariana apareceu, pálida, mais magra do que me lembrava. Os olhos dela evitaram os meus.

— Mãe… não devias ter vindo sem avisar.

— Não me deixaste escolha — respondi, tentando controlar as lágrimas.

Entrámos. A casa era simples, fria, com móveis antigos e uma lareira apagada. O marido dela, o Rui, estava sentado à mesa, olhar duro, braços cruzados.

— Bom dia, Dona Teresa — disse ele, sem sorrir.

— Bom dia, Rui.

O ambiente era tenso. Mariana serviu-me chá com as mãos a tremer. Notei um hematoma no pulso dela. O meu coração gelou.

— O que aconteceu ao teu braço? — perguntei baixinho.

Ela hesitou.

— Cai… caí nas escadas — murmurou.

O Rui lançou-lhe um olhar cortante. Senti um nó no estômago. Tentei mudar de assunto, mas ela mal falava. Depois do almoço, pedi para falar com ela sozinha no quarto.

— Mariana, olha para mim — implorei. — Diz-me a verdade. O Rui fez-te isto?

Ela começou a chorar em silêncio, lágrimas grossas a escorrerem-lhe pela cara.

— Mãe… não te metas… por favor…

— Não posso fingir que não vejo! — sussurrei, abraçando-a com força.

Nesse momento ouvi passos pesados no corredor. O Rui abriu a porta sem bater.

— Está tudo bem aqui?

Mariana limpou as lágrimas rapidamente.

— Está… está sim.

O resto da tarde foi um tormento. Senti-me impotente, presa numa teia de medo e silêncio. À noite, ouvi-os discutir baixinho no quarto ao lado:

— Eu avisei-te para não contares nada à tua mãe! — rosnou ele.

— Ela percebeu… — soluçou Mariana.

— Se ela se mete na nossa vida, vai arrepender-se!

Fiquei acordada até ao amanhecer, o coração aos saltos. No pequeno-almoço, tentei convencer Mariana a vir comigo para Coimbra.

— Não posso… ele não deixa… — murmurou ela.

— Mariana, tu não és prisioneira! — insisti.

O Rui entrou na cozinha nesse instante.

— A Teresa já vai embora hoje — disse ele friamente.

Senti-me derrotada. Antes de sair, abracei Mariana com toda a força do meu amor de mãe.

No comboio de regresso chorei baixinho. Senti vergonha por não conseguir protegê-la, raiva por ela não se defender, medo pelo que podia acontecer-lhe ali sozinha naquela aldeia esquecida.

Durante semanas tentei ligar-lhe todos os dias. Sem resposta. Comecei a ter pesadelos: via-a presa numa casa escura, sem janelas, a gritar por mim. Fui à polícia em Coimbra pedir ajuda. Disseram-me que sem provas ou denúncia da própria Mariana nada podiam fazer.

A minha irmã Ana dizia-me para ter calma:

— Teresa, ela tem de querer sair dessa situação… Não podes obrigá-la.

Mas como podia eu ficar parada?

Um mês depois recebi uma mensagem dela: “Preciso de ti.”

Fui imediatamente para São Martinho das Moitas. Encontrei-a à porta da igreja da aldeia, encolhida sob um casaco velho.

— Mãe… ajuda-me… — sussurrou ela entre lágrimas.

Levei-a para Coimbra naquela noite. O Rui apareceu em casa dos meus pais dois dias depois, furioso:

— Onde está a minha mulher? Ela é minha!

Chamei a polícia. Ele foi afastado por ordem judicial temporária. Mariana ficou comigo semanas sem sair do quarto, assustada até com o som do telefone.

Aos poucos começou a falar:

— Ele controlava tudo… até o dinheiro da casa… dizia que eu não prestava para nada…

Ouvia-a e sentia uma mistura de culpa e alívio: culpa por não ter percebido antes; alívio por finalmente poder protegê-la.

A família dividiu-se: alguns diziam que eu devia ter respeitado o casamento dela; outros apoiaram-me sem reservas. A minha mãe foi dura comigo:

— Teresa, tu também foste demasiado dura com ela em miúda… talvez por isso ela tenha escolhido alguém assim…

Essas palavras ficaram-me gravadas como uma ferida aberta.

Mariana começou terapia e arranjou trabalho numa loja em Coimbra. Lentamente recuperou o sorriso tímido de antigamente. Mas entre nós ficou sempre um silêncio estranho: um espaço vazio onde antes havia confiança cega.

Um dia perguntei-lhe:

— Achas que algum dia vais conseguir perdoar-me por não ter visto antes?

Ela olhou-me nos olhos:

— Mãe… eu também me escondi de ti porque tinha vergonha…

Abraçámo-nos em silêncio longo tempo.

Hoje escrevo esta história porque sei que muitas mães vivem este dilema: até onde devemos ir para proteger os nossos filhos? Quando é que o amor se torna invasão? E será que alguma vez conseguimos sarar as feridas do silêncio entre nós?