Amor Que Se Apagou no Silêncio: A História de Inês e Rui
— Inês, precisamos falar. — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria como o vento que batia nas janelas naquela noite de janeiro. Eu estava a preparar o jantar, cortando cebolas com as mãos trémulas, já sentindo que algo não estava bem. O silêncio entre nós tinha-se tornado uma presença constante, mas nunca pensei que fosse tão pesado.
— O que foi agora, Rui? — perguntei, tentando soar calma, mas a minha voz saiu num sussurro quase suplicante.
Ele não me olhou nos olhos. Ficou ali, parado à porta, com as mãos nos bolsos do casaco. — Isto já não faz sentido. Nós… nós estamos a enganar-nos a nós próprios.
O chão fugiu-me dos pés. Senti o coração a bater descompassado, as lágrimas a quererem saltar, mas forcei-me a manter a compostura. — Estás a falar de quê? De nós? Do nosso casamento?
Ele assentiu, finalmente levantando o olhar. Vi ali uma tristeza que me magoou mais do que qualquer grito. — Eu conheci alguém, Inês. Não foi planeado. Simplesmente aconteceu.
O mundo parou. O cheiro da cebola misturou-se com o sal das minhas lágrimas. Não consegui dizer nada. Fiquei ali, imóvel, a olhar para o homem com quem partilhei dez anos da minha vida, o pai da nossa filha Leonor, e percebi que tudo aquilo que construímos estava prestes a ruir.
Os dias seguintes foram um borrão de dor e silêncio. A Leonor tinha apenas sete anos e não percebia porque é que o pai já não vinha jantar connosco, porque é que eu chorava à noite no quarto. A minha mãe ligava-me todos os dias, mas eu não tinha forças para atender. O meu irmão Miguel apareceu lá em casa sem avisar, trazendo pão quente da padaria e um abraço apertado.
— Ele não te merece, Inês. — disse-me ele uma noite, enquanto eu tentava comer qualquer coisa. — Sempre foste tu a segurar tudo. O Rui nunca te deu valor.
Eu queria defendê-lo, mas não consegui. No fundo, sabia que o Miguel tinha razão. O Rui era bom pai, mas sempre foi ausente como marido. As discussões começaram logo depois do nascimento da Leonor: ele queria sair com os amigos, eu ficava em casa sozinha com a bebé. Depois vieram as contas por pagar, as noites em claro, os sonhos adiados.
A minha sogra, Dona Teresa, nunca gostou de mim. Dizia que eu era demasiado ambiciosa para o filho dela, que devia ter ficado no emprego seguro na Câmara Municipal em vez de tentar abrir o meu próprio atelier de costura. Quando soube da separação, ligou-me só para perguntar se eu ia deixar o Rui ver a Leonor aos fins-de-semana.
— Não se preocupe, Dona Teresa — respondi-lhe com a voz mais firme que consegui encontrar. — A Leonor nunca vai perder o pai por minha causa.
Mas por dentro sentia-me sozinha como nunca antes. As noites eram longas e frias naquele apartamento pequeno em Almada. O barulho dos vizinhos, o som dos carros na rua, tudo parecia amplificar o vazio que o Rui deixou.
Uma tarde, enquanto arrumava as roupas dele numa caixa para ele vir buscar, encontrei uma carta antiga que ele me escreveu quando ainda namorávamos. “Prometo amar-te todos os dias da minha vida”, dizia ele numa letra apressada mas cheia de ternura. Sentei-me no chão do quarto e chorei até não ter mais lágrimas.
A Leonor começou a ter pesadelos. Chamava pelo pai durante a noite e eu sentava-me ao lado dela, fazendo festas no cabelo até ela adormecer outra vez. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: como é que ele pôde fazer isto connosco?
No trabalho, tentei manter-me ocupada. O atelier era pequeno mas era meu orgulho: costurava vestidos de noiva para raparigas sonhadoras como eu fui um dia. Mas agora cada renda branca parecia um lembrete cruel do que perdi.
As amigas tentavam animar-me com convites para sair ou mensagens engraçadas no WhatsApp. Mas eu só queria ficar sozinha com os meus pensamentos e as minhas mágoas.
Um dia, ao buscar a Leonor à escola, encontrei o Rui à porta do colégio com uma mulher loira ao lado dele. Ela sorriu-me educadamente e eu senti um nó na garganta.
— Inês — disse ele — esta é a Marta.
Cumprimentei-a com um aceno de cabeça e puxei a Leonor pela mão sem dizer mais nada. No carro, ela perguntou:
— Mãe, quem era aquela senhora?
— É uma amiga do pai — menti-lhe, sentindo-me miserável por ter de esconder-lhe a verdade.
As semanas passaram e fui aprendendo a viver sem o Rui. Comecei a correr ao fim da tarde para libertar a raiva e a tristeza. Fiz novas amigas no parque e aos poucos fui recuperando alguma alegria.
Mas as feridas estavam longe de sarar. No Natal desse ano, fomos à casa da minha mãe em Setúbal. O Rui ligou para falar com a Leonor e ela chorou ao telefone porque queria passar o Natal com os dois juntos como antes.
— Desculpa, filha — disse-lhe eu depois de desligar — mas às vezes as coisas mudam mesmo quando não queremos.
A minha mãe abraçou-me e disse:
— Tens de ser forte por ela e por ti própria.
No Ano Novo fiz uma promessa: ia recomeçar do zero. Inscrevi-me num curso de empreendedorismo para mulheres e comecei a divulgar mais o meu trabalho nas redes sociais. Aos poucos fui tendo mais clientes e até recebi um convite para expor os meus vestidos numa feira em Lisboa.
O Rui continuava presente na vida da Leonor mas entre nós restava apenas uma cordialidade fria. Um dia ele apareceu lá em casa para buscar uns documentos e ficou parado à porta do atelier a olhar para mim.
— Nunca quis magoar-te — disse ele baixinho.
— Mas magoaste — respondi sem conseguir olhar para ele.
Ele suspirou e foi-se embora sem dizer mais nada.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquela noite em que tudo desabou. Ainda dói ver a Leonor dividir-se entre dois mundos diferentes ou ouvir os comentários maldosos da Dona Teresa quando nos cruzamos no supermercado.
Mas aprendi que sou mais forte do que pensava. Que posso ser mãe e mulher ao mesmo tempo, mesmo sem um homem ao meu lado.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia voltarei a confiar em alguém? Será possível reconstruir um coração partido? E vocês… já passaram por algo assim? Como encontraram forças para recomeçar?