Casa Dividida: A Minha Luta por Paz no Meu Próprio Lar
— Teresa, não podes simplesmente fechar-te no quarto sempre que eles vêm cá! — A voz do António ecoou pelo corredor, carregada de frustração e cansaço. Senti o peito apertar-se, como se cada palavra dele fosse um prego a cravar-se na minha pele.
Olhei para ele, parado à porta do nosso quarto, com as mãos nos bolsos e o olhar perdido entre a raiva e a impotência. Lá em baixo, ouvia-se o riso estridente da Inês, a filha dele do primeiro casamento, e os gritos das crianças a correrem pela sala. Era sábado outra vez. Mais um fim de semana em que a minha casa deixava de ser minha.
— António, eu não me fecho. Eu só… preciso de um pouco de silêncio. — A minha voz saiu baixa, quase um sussurro. Sabia que ele não ia perceber. Nunca percebia.
Ele suspirou, passou a mão pelo cabelo grisalho e desceu as escadas sem dizer mais nada. Fiquei ali, sentada na beira da cama, a olhar para as minhas mãos trémulas. Ouvia tudo: os brinquedos a cair no chão, a Inês a ralhar com o filho mais velho porque tinha partido um copo, o António a tentar acalmar toda a gente. E eu ali, invisível.
Quando casei com o António há dez anos, sabia que ele trazia uma filha de outro casamento. Mas nunca imaginei que, aos 55 anos, teria de partilhar o meu espaço com uma família que não era verdadeiramente minha. No início, tentei ser amiga da Inês. Convidei-a para almoços, ofereci-me para ficar com os miúdos quando ela precisava. Mas ela nunca me aceitou como parte da família. Sempre fui “a mulher do pai”.
As coisas pioraram quando nasceu o segundo neto do António. De repente, todos os fins de semana eram passados cá em casa. A Inês dizia que precisava de ajuda, que estava cansada, que só aqui conseguia descansar. O António ficava radiante por ter os netos por perto. E eu… eu sentia-me cada vez mais pequena.
Lembro-me de um domingo à tarde em particular. Estava a preparar o jantar quando ouvi a Inês dizer ao António:
— Pai, não percebo porque é que a Teresa está sempre tão distante. Parece que não gosta dos meus filhos.
Fiquei gelada. O António olhou para mim, mas não disse nada. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as com o orgulho de quem já chorou demais por dentro.
Mais tarde, nessa noite, tentei falar com ele:
— António, eu faço tudo para que eles se sintam bem aqui. Mas às vezes sinto que não pertenço a esta família.
Ele olhou-me com uma tristeza nos olhos que me desarmou:
— Teresa, tu és a minha família.
Mas não era verdade. Não completamente. Porque todos os gestos dele eram para agradar à filha e aos netos. Eu era sempre o segundo plano.
Comecei a evitar os fins de semana em casa. Inventava idas ao supermercado demoradas, caminhadas longas pelo parque ou visitas à minha irmã em Almada. Mas cada vez que voltava, encontrava a casa num caos: brinquedos espalhados, loiça por lavar, sofás manchados de sumo e o António exausto mas feliz.
Uma noite, depois de um desses fins de semana caóticos, sentei-me sozinha na varanda com um copo de vinho na mão. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me: “Será isto o preço do amor?” Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — raiva da Inês por nunca me aceitar, raiva do António por nunca me defender, raiva de mim própria por não conseguir impor limites.
No trabalho, comecei a chegar mais cedo e sair mais tarde só para evitar estar em casa. A minha colega Paula percebeu logo:
— Teresa, tu andas diferente. Está tudo bem?
Quis contar-lhe tudo — sobre os gritos das crianças, sobre o silêncio pesado entre mim e o António, sobre o vazio que sentia — mas limitei-me a sorrir e dizer:
— São só coisas lá de casa.
Uma sexta-feira à noite, quando cheguei do trabalho já depois das nove, encontrei a Inês sentada à mesa da cozinha com o António. Estavam a discutir baixinho. Quando entrei, calaram-se imediatamente.
— Teresa — disse ela num tom frio — precisamos de falar.
Sentei-me devagarinho à mesa.
— Eu sei que não gostas quando venho cá com os miúdos — começou ela — mas esta é a casa do meu pai. E eu preciso dele.
Olhei para ela nos olhos:
— E eu? Não preciso dele também? Não tenho direito ao meu espaço?
O António tentou intervir:
— Por favor… não vamos discutir…
Mas eu já não conseguia parar:
— Passo a semana inteira sozinha nesta casa à espera do fim de semana para estar com o meu marido. E quando chega o fim de semana… sou uma estranha na minha própria casa!
A Inês levantou-se abruptamente:
— Se é assim que te sentes, talvez seja melhor deixarmos de vir cá!
O António ficou pálido:
— Não digas isso…
Ela saiu da cozinha batendo com a porta. O silêncio ficou pesado entre mim e o António.
— Teresa… — começou ele — eu amo-te. Mas são os meus netos…
— E eu? — perguntei-lhe baixinho — Quando é que sou eu?
Ele não respondeu.
Nessa noite dormi pouco. O António ficou no sofá. No dia seguinte acordei cedo e fui até à praia da Costa da Caparica sozinha. Sentei-me na areia fria e chorei tudo o que tinha guardado durante anos.
Na semana seguinte procurei uma terapeuta familiar. Precisava de alguém que me ajudasse a encontrar respostas ou pelo menos algum alívio para esta dor surda.
As sessões ajudaram-me a perceber que tinha direito aos meus próprios limites e ao meu espaço. Comecei a falar mais abertamente com o António sobre o que sentia — mesmo quando ele ficava desconfortável ou tentava mudar de assunto.
Com o tempo, estabelecemos algumas regras: os fins de semana alternados seriam só para nós; nos outros, ajudaria no que pudesse mas também teria tempo para mim; e acima de tudo, combinámos falar sempre antes das visitas da Inês.
A relação com ela nunca ficou perfeita — ainda há silêncios desconfortáveis e olhares frios — mas pelo menos agora sinto que existo nesta casa.
Às vezes ainda me pergunto se fiz bem em lutar tanto por este espaço ou se devia simplesmente ter desistido há muito tempo.
Mas depois lembro-me daquela noite na varanda e penso: quantas mulheres como eu vivem caladas dentro das suas próprias casas? Quantas sacrificam tudo pela felicidade dos outros sem nunca serem vistas?
E vocês? Até onde iriam para proteger o vosso próprio espaço sem magoar quem amam?