Espelhos Partidos: A Minha Vida Entre Mentiras e Perdão
— Não me mintas, Miguel! — gritei, sentindo a garganta arder, as mãos a tremerem enquanto segurava o extracto bancário que encontrara por acaso no bolso do seu casaco. O silêncio dele foi mais cortante do que qualquer resposta. Os olhos baixos, as mãos enfiadas nos bolsos, como se ali pudesse esconder a culpa.
Nunca pensei que a minha vida pudesse virar do avesso numa noite de terça-feira. Sempre achei que as tragédias aconteciam aos outros, nas novelas ou nos jornais. Mas ali estava eu, na cozinha da nossa casa em Almada, com os azulejos frios a reflectirem a luz crua do candeeiro, a sentir-me uma estranha na minha própria vida.
— Não é o que estás a pensar, Mariana — murmurou ele, finalmente. Mas eu já sabia. O extracto não mentia: transferências regulares para uma conta no nome dele, valores altos demais para serem apenas “poupanças”. E depois, aquela palavra que me gelou o sangue: “advogado”.
— Vais deixar-me? — perguntei, a voz quase inaudível. Ele não respondeu. O silêncio dele foi a confirmação de tudo o que eu temia.
A nossa filha, Inês, dormia no quarto ao lado. Tinha só oito anos e ainda acreditava que o mundo era um lugar seguro. Senti-me esmagada pelo peso da responsabilidade: como lhe iria explicar que o pai já não queria fazer parte da nossa família? Como se explica a uma criança que o amor pode acabar?
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Miguel evitava-me, saía cedo e chegava tarde. Eu fingia normalidade para a Inês, mas por dentro era só cacos. A minha mãe ligava todos os dias:
— Mariana, estás tão calada… Está tudo bem?
Queria gritar-lhe a verdade, mas não conseguia. Sempre fui a filha forte, a que nunca dava problemas. Não queria ser um fardo.
Uma noite, depois de deitar a Inês, sentei-me na varanda com um copo de vinho barato e deixei as lágrimas correrem. Lembrei-me de quando conheci o Miguel, no café da faculdade em Lisboa. Ele fazia-me rir como ninguém. Prometeu-me o mundo e eu acreditei. Agora, tudo parecia uma mentira.
No trabalho, comecei a falhar prazos. A minha chefe, Dona Teresa, chamou-me ao gabinete:
— Mariana, tu sempre foste exemplar… O que se passa?
Baixei os olhos, envergonhada. Não podia contar-lhe tudo. Disse apenas:
— Estou a passar uma fase difícil em casa.
Ela pousou a mão no meu ombro:
— Se precisares de falar…
Agradeci, mas não falei. Guardava tudo para mim, como sempre fiz.
O Miguel finalmente confessou numa noite chuvosa:
— Já não sou feliz aqui. Sinto-me preso. Preciso de outra vida.
As palavras dele foram facas. Tentei argumentar:
— E a Inês? E tudo o que construímos?
Ele desviou o olhar:
— Não posso continuar a mentir.
A raiva misturou-se à dor:
— E achas justo esconderes dinheiro? Preparares tudo nas minhas costas?
Ele encolheu os ombros:
— Tive medo da tua reação.
Medo? Medo de quê? De eu lutar pela nossa família? De eu não aceitar ser descartada como um móvel velho?
As semanas seguintes foram um desfile de advogados, papéis para assinar e discussões sobre guarda partilhada. A Inês começou a perguntar:
— Porque é que o pai já não janta connosco?
Inventei desculpas:
— O pai tem muito trabalho.
Mas ela não era parva. Uma noite entrou no meu quarto e encontrou-me a chorar.
— Mãe, tu estás triste?
Abracei-a com força:
— Um bocadinho, filha. Mas vai ficar tudo bem.
Ela limpou-me as lágrimas com as mãos pequeninas:
— Eu fico contigo.
Foi aí que percebi: tinha de ser forte por ela. Por mim também.
A minha mãe acabou por descobrir tudo quando me viu magra demais e com olheiras fundas.
— Mariana! O que é isto? — exclamou ao ver-me recusar o jantar.
Desabei:
— O Miguel vai-se embora… Ele tem outra vida.
Ela abraçou-me como quando era criança:
— Filha, os homens vão e vêm. Mas tu és mais forte do que pensas.
Comecei então a reconstruir-me aos poucos. Voltei ao ginásio onde ia antes de casar. Inscrevi-me num curso de fotografia na Casa da Juventude. Fiz novas amigas: a Joana, divorciada há anos; a Sofia, mãe solteira; a Carla, que nunca quis casar.
Com elas aprendi que não era a única a sentir-se perdida. Partilhávamos histórias de traições, recomeços e pequenas vitórias diárias: um jantar sozinha sem chorar; um passeio com os filhos ao domingo; um novo corte de cabelo.
O Miguel arranjou outra mulher pouco tempo depois: uma colega do escritório chamada Vera. Quando soube, senti raiva e inveja — como pôde ele seguir em frente tão depressa? Mas depois percebi: ele já tinha ido embora há muito tempo; eu é que ainda estava presa ao passado.
A Inês adaptou-se melhor do que eu esperava. No início chorava muito quando ia para casa do pai aos fins-de-semana, mas depois começou a gostar da rotina nova. Um dia disse-me:
— A Vera faz panquecas melhores do que tu!
Doeu ouvir aquilo, mas sorri:
— Que bom, filha! Depois ensinas-me como se faz.
Aos poucos fui perdoando o Miguel — não por ele, mas por mim. Guardar rancor só me fazia mal. Um dia encontrei-o na escola da Inês e ele disse:
— Obrigado por teres sido compreensiva… Sei que não foi fácil.
Respondi apenas:
— Quero só que a Inês seja feliz.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que começou esta história: mais forte, mais livre e menos ingénua. Ainda tenho medo do futuro — quem não tem? — mas aprendi que sou capaz de sobreviver ao pior.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem histórias como a minha em silêncio? Quantas têm coragem de recomeçar? E vocês — já tiveram de juntar os pedaços depois de verem o vosso mundo partir-se?