Nem Tudo É o Que Parece: Confissões de uma Professora de Vila
— Dona Teresa, a minha filha não mente! — gritou a Dona Lurdes, com os olhos marejados de raiva e orgulho ferido, enquanto eu tentava, pela terceira vez naquela manhã, explicar o que se tinha passado na sala de aula.
O corredor da escola cheirava a giz e a humidade. O eco das vozes misturava-se com o som das crianças a brincar lá fora. Eu sentia o coração a bater tão forte que quase abafava as palavras da mãe da Mariana. Por dentro, lutava para não me desmoronar. Como é que tudo tinha chegado àquele ponto?
Naquela segunda-feira cinzenta de novembro, entrei na sala já cansada. O meu marido, António, tinha passado a noite fora outra vez — dizia que era trabalho na cooperativa, mas eu sabia que havia mais qualquer coisa. Os meus filhos, o Tiago e a Inês, tinham discutido por causa do pequeno-almoço. E eu, como sempre, engoli tudo em silêncio e fui trabalhar.
A Mariana era uma menina doce, mas ultimamente andava estranha. Chegava atrasada, olhava para o chão e respondia com monosílabos. Naquele dia, durante a aula de Matemática, reparei que ela escondia algo debaixo da carteira. Quando me aproximei, vi um telemóvel — proibido na escola. Pedi-lhe que mo entregasse.
— Não é meu! — sussurrou ela, com lágrimas nos olhos.
— Mariana, sabes que não podes trazer isto para a escola. Vamos falar com a tua mãe ao fim do dia.
Ela abanou a cabeça e ficou calada. Achei estranho, mas segui com a aula. À tarde, quando chamei a Dona Lurdes para conversar, nunca imaginei o que estava prestes a acontecer.
— A Mariana nunca teve telemóvel! — exclamou a mãe, indignada. — Deve ter sido outra criança a pôr-lho na mochila!
Tentei explicar que tinha visto a Mariana com o aparelho na mão. Mas Dona Lurdes não quis ouvir. No dia seguinte, já toda a aldeia murmurava sobre mim: “A professora anda a acusar as crianças à toa”, “Coitada da Mariana, tão boa menina”.
O ambiente tornou-se insuportável. Os pais começaram a olhar-me de lado no café da vila. O senhor Joaquim deixou de me cumprimentar na padaria. Até o padre Manuel fez uma homilia sobre o perigo de julgarmos sem provas.
Em casa, o António mal falava comigo. — Não te metas em problemas — disse ele uma noite, enquanto via futebol. — Aqui toda a gente se conhece. Não vale a pena arranjar chatices.
Mas eu não conseguia ignorar o assunto. Sentia-me injustiçada e impotente. Comecei a duvidar de mim própria: teria sido demasiado dura? E se tivesse sido outra criança? Mas aquela imagem da Mariana com o telemóvel não me saía da cabeça.
Uma semana depois, recebi um bilhete anónimo na caixa do correio da escola: “A Mariana não é tão inocente como parece.” Fiquei gelada. Quem teria escrito aquilo? Uma criança? Um adulto? Decidi falar com a Mariana novamente.
— Mariana, podes confiar em mim — disse-lhe baixinho, depois da aula. — Se precisares de ajuda…
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em dias. Vi ali um pedido de socorro mudo.
— Professora… posso contar-lhe uma coisa?
Assenti e sentei-me ao lado dela.
— O telemóvel era do meu pai… Ele pediu-me para não contar à minha mãe. Ele… ele fala com outra senhora pelo telefone… Eu só queria ver as mensagens…
O chão fugiu-me dos pés. A menina tremia enquanto falava. Senti uma onda de compaixão misturada com raiva — não dela, mas da situação em que estava metida.
— Mariana…
Ela chorou baixinho no meu ombro.
— Não quero que os meus pais se separem…
Fiquei ali sentada com ela até ao fim do recreio. Depois fui para casa com um peso no peito impossível de descrever.
Nessa noite não dormi. O António ressonava ao meu lado e eu pensava em quantas vezes tinha feito de conta que não via os sinais no meu próprio casamento. Quantas vezes tinha preferido acreditar numa mentira confortável do que enfrentar uma verdade dolorosa?
No dia seguinte, pedi à Dona Lurdes para vir à escola sozinha.
— Dona Lurdes… precisamos de conversar sobre a Mariana.
Ela entrou desconfiada, braços cruzados.
— A sua filha está a sofrer muito…
Contei-lhe tudo, sem entrar em detalhes escabrosos. Falei do medo da Mariana, do segredo pesado demais para uma criança carregar.
Dona Lurdes ficou pálida. Chorou em silêncio durante minutos intermináveis.
— Nunca pensei… — murmurou ela por fim. — Sempre achei que estava tudo bem…
Abraçámo-nos ali mesmo, duas mulheres esmagadas pelas mentiras dos homens das suas vidas.
A partir desse dia, as coisas mudaram devagarinho. A aldeia nunca soube toda a verdade — só os boatos ficaram. Mas eu e Dona Lurdes tornámo-nos cúmplices silenciosas na missão de proteger a Mariana.
Em casa, finalmente confrontei o António sobre as suas ausências e mentiras. Não foi bonito nem fácil. Discutimos até às lágrimas. Mas pela primeira vez em anos senti-me dona da minha vida.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes julgamos sem saber? Quantas crianças carregam segredos maiores do que elas próprias? E nós, adultos — seremos mesmo tão diferentes?