“Estás-me a dever alguma coisa” – A história de uma filha que nunca ouviu um pedido de desculpas da própria mãe
“Estás-me a dever alguma coisa, Mariana.” As palavras da minha mãe ecoaram na cozinha fria, enquanto eu lavava a loiça do jantar. O cheiro a bacalhau ainda pairava no ar, misturado com o aroma do detergente barato. Olhei para ela, sentada à mesa, os olhos duros e cansados, mas ainda com aquele brilho de quem nunca cede.
A minha garganta apertou-se. Tantas vezes ouvi aquela frase, dita com diferentes tons: acusação, cobrança, até mesmo desprezo. Desde criança que sentia que era um peso para ela. Lembro-me de noites em que me encolhia na cama, ouvindo-a resmungar sozinha pela casa: “Se não fosses tu, a minha vida era outra.” Cresci a tentar ser invisível, a não dar trabalho, a não pedir colo. O colo era para o meu irmão mais novo, o Pedro, o menino dos olhos dela.
“Não te esqueças que sou tua mãe”, continuou ela, como se isso justificasse tudo. “Agora preciso de ti.”
A minha vontade era gritar. Dizer-lhe que eu também precisei dela tantas vezes e ela nunca esteve. Mas calei-me, como sempre. Senti as mãos tremerem enquanto esfregava um prato já limpo.
O Pedro nunca aparece. Vive em Lisboa, tem uma vida feita, só liga no Natal ou quando precisa de dinheiro. Mas para a minha mãe, ele é sempre o filho perfeito. Eu fiquei aqui, em Vila Nova de Gaia, a cuidar dela desde que ficou doente. A fazer compras, a dar-lhe banho quando já não consegue levantar-se sozinha, a ouvir as suas queixas intermináveis.
Lembro-me de um dia em que tinha oito anos e cheguei a casa com um desenho para ela. Tinha desenhado nós as duas num jardim. Ela olhou para o papel e disse: “Não tenho tempo para isto agora.” Senti o coração partir-se em mil pedaços. Nunca mais desenhei nada para ela.
Os anos passaram e aprendi a viver sem esperar nada dela. Quando o meu pai morreu num acidente de trabalho nas obras do metro do Porto, eu tinha doze anos. A minha mãe fechou-se ainda mais no seu mundo amargo. Eu fazia o jantar, tratava do Pedro, limpava a casa. Ela só falava comigo para mandar ou reclamar.
“Mariana, não fizeste bem a cama ao teu irmão.”
“Mariana, porque é que deixaste o leite ferver?”
“Mariana, não sabes fazer nada direito.”
Nunca ouvi um “obrigada”. Nunca ouvi um “desculpa”. Nem quando me bateu por engano porque achou que eu tinha partido o vaso da sala (foi o Pedro), nem quando me deixou sozinha em casa porque foi ao café jogar às cartas e eu fiquei horas à espera dela à janela.
Agora ela está velha e frágil. Tem artroses nas mãos e dores nas costas. Precisa de mim para tudo. E eu estou aqui. Mas cada vez que ela me olha com aquele olhar de cobrança, sinto uma raiva surda crescer dentro de mim.
“Mariana, traz-me água.”
“Mariana, dói-me as pernas.”
“Mariana, não sabes fazer sopa como eu fazia.”
Às vezes pergunto-me porque continuo aqui. Porque não faço como o Pedro e fujo desta casa cheia de memórias pesadas. Mas depois lembro-me da minha filha, a Sofia. Tenho medo de repetir os erros da minha mãe. Tento ser diferente com ela: dou-lhe abraços, ouço os seus medos, digo-lhe que gosto dela todos os dias.
Uma noite destas, depois de deitar a minha mãe e arrumar a cozinha, sentei-me no sofá com a Sofia ao colo. Ela perguntou:
“Mãe, porque é que a avó está sempre zangada?”
Fiquei sem resposta. Como explicar a uma criança que há dores antigas que nunca saram? Que há pessoas que não sabem amar?
No dia seguinte, enquanto dava banho à minha mãe, ela olhou para mim pelo espelho e disse:
“Se não fosses tu… não sei o que seria de mim.”
Por um segundo pensei que ia ouvir um agradecimento. Mas ela continuou:
“És minha filha, é tua obrigação.”
Senti uma lágrima escorrer pelo rosto. Não por ela – por mim mesma. Por todas as vezes que desejei ouvir um simples “desculpa”. Por todas as vezes que me culpei por não ser suficiente.
Na semana passada o Pedro ligou. Disse que vinha visitar-nos ao fim de semana. A minha mãe ficou radiante – até pediu para lhe comprar bolo-rei e arranjar-lhe o cabelo.
No sábado ele chegou com pressa e saiu logo depois do almoço. Deixou-me cinquenta euros em cima da mesa e disse:
“Compra qualquer coisa para a mãe.”
A minha mãe chorou quando ele foi embora. Chorou por ele ter ido tão depressa – mas nunca chorou por mim.
À noite sentei-me à mesa com ela. O silêncio era pesado.
“Mãe… alguma vez pensaste em pedir desculpa?”
Ela olhou para mim como se eu tivesse dito uma blasfémia.
“Desculpa? Porquê? Fiz tudo o que pude.”
Levantei-me sem dizer mais nada. Fui para o quarto da Sofia e fiquei ali sentada ao lado dela até adormecer.
Agora escrevo estas palavras enquanto ouço a respiração pesada da minha mãe no quarto ao lado. Pergunto-me se algum dia vou conseguir perdoá-la verdadeiramente – ou se vou passar a vida inteira à espera de um pedido de desculpas que nunca virá.
Será que somos obrigados a amar quem nunca nos amou? Será possível quebrar este ciclo? Gostava de saber o que fariam no meu lugar.