A Fome da Vizinha: Um Silêncio que Ecoa

— Mãe, hoje também não há jantar? — ouvi a voz trémula da Mariana, do outro lado da parede fina que separava o nosso apartamento do delas. O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer resposta. Eu, com oito anos, sentado à mesa da cozinha, olhei para o prato de arroz com feijão que a minha mãe me servira. O cheiro era simples, mas naquele momento pareceu-me um luxo.

A minha mãe percebeu o meu olhar e, sem dizer nada, partiu metade do seu pão e colocou-o no meu prato. — Come, Miguel. Amanhã levas um pouco para a Mariana, sim? — sussurrou, como se tivesse medo que alguém ouvisse. O nosso bairro em Chelas era feito de silêncios cúmplices e olhares desviados. Todos sabíamos das dificuldades uns dos outros, mas raramente falávamos delas.

Dona Lurdes era uma mulher magra, de rosto cansado e mãos sempre ocupadas com alguma tarefa invisível. O marido, o senhor António, passava os dias no café da esquina, afogado em copos de vinho barato e discussões inúteis sobre futebol. Mariana, com os seus cabelos desgrenhados e olhos enormes, era a sombra de uma criança que nunca conheceu a leveza da infância.

Lembro-me de uma noite em particular. Chovia tanto que as gotas pareciam tamborilar dentro do nosso próprio peito. Ouvi gritos abafados vindos do apartamento ao lado. — Não temos nada! Nem pão, nem leite! — chorava Dona Lurdes. O senhor António respondeu-lhe com um estrondo de porta e passos pesados pelas escadas abaixo. Fiquei imóvel na cama, o coração aos pulos.

No dia seguinte, encontrei Mariana no corredor da escola. Trazia o mesmo casaco puído do inverno anterior e um olhar perdido. — O teu pai está melhor? — perguntei, sem saber bem o que dizer.

Ela encolheu os ombros. — Ele não gosta de mim. Diz que sou um peso. — A voz dela era tão baixa que quase não a ouvi.

Quis abraçá-la, mas não tive coragem. Em vez disso, tirei do bolso um pedaço de pão com marmelada que a minha mãe me dera para ela. Mariana sorriu, um sorriso pequeno e triste.

Os anos passaram e as coisas só pioraram. O senhor António perdeu o emprego na fábrica e começou a passar mais tempo no café. Dona Lurdes arranjava limpezas aqui e ali, mas o dinheiro nunca chegava. Muitas vezes via Mariana à janela, olhando para a rua como se esperasse que algo mudasse.

Uma tarde de verão, ouvi uma discussão ainda mais violenta do que o habitual. Ouvia-se vidro a partir-se e choros sufocados. A minha mãe foi bater à porta deles. — Precisas de ajuda? — perguntou baixinho.

Dona Lurdes apareceu à porta com o rosto inchado e os olhos vermelhos. — Não quero incomodar… já chega de vergonha nesta casa.

— Não é vergonha pedir ajuda — insistiu a minha mãe.

Mas Dona Lurdes fechou a porta devagar, como quem fecha uma esperança.

Na escola, Mariana tornou-se cada vez mais calada. Os professores notavam as faltas frequentes e as notas a descerem, mas ninguém fazia perguntas diretas. Um dia, encontrei-a sentada sozinha no recreio, a desenhar círculos na terra com um pau.

— Gostavas de fugir daqui? — perguntei-lhe num impulso.

Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas. — Para onde? Se calhar noutro sítio também não há nada para mim.

Fiquei sem resposta.

O tempo foi passando e eu cresci com aquela sensação constante de impotência. Via Dona Lurdes cada vez mais magra, Mariana cada vez mais ausente. O senhor António acabou por desaparecer de vez; disseram que foi viver para o Norte com um primo qualquer. Ninguém sentiu falta.

Quando fiz 18 anos, entrei na universidade com uma bolsa de estudo. No dia em que fui embora, passei pelo apartamento delas para me despedir. Bati à porta e esperei. Dona Lurdes abriu com um sorriso cansado.

— Vai ser alguém importante, Miguel. Não te esqueças de nós — disse-me ela.

Mariana apareceu atrás dela, já adolescente mas ainda com aquele olhar vazio. — Boa sorte — murmurou.

Prometi que voltaria para as visitar sempre que pudesse.

Durante anos cumpri essa promessa. Mas cada vez que voltava ao bairro, encontrava-as mais apagadas, como se fossem sombras do passado presas num presente interminável.

Um dia recebi uma chamada da minha mãe: Dona Lurdes tinha morrido subitamente, sozinha em casa. Mariana desaparecera; ninguém sabia dela. Diziam que tinha ido para o Porto procurar trabalho ou talvez apenas fugir dos fantasmas daquele apartamento minúsculo.

Fiquei dias a pensar no que poderia ter feito diferente. E se tivesse falado com alguém? E se tivesse insistido mais? A culpa tornou-se uma companheira silenciosa.

Hoje sou adulto, tenho uma família e uma vida confortável em Lisboa. Mas nunca consegui esquecer aquela fome silenciosa da vizinha e o olhar perdido da Mariana.

Às vezes pergunto-me: quantas Marianas existem ainda hoje ao nosso lado? E quantos de nós fingimos não ver?