Quando a Amizade se Perde Entre Fraldas e Silêncios: A História de Inês e Marta
— Marta, tu não podes continuar assim! — gritei, sem conseguir conter a frustração, enquanto ela, sentada no sofá com o cabelo desgrenhado e o pijama manchado de leite, olhava para mim com olhos cansados e vazios. O pequeno Tomás chorava no berço improvisado na sala, e o cheiro a fraldas sujas misturava-se com o aroma do café frio que repousava na mesa.
Nunca pensei que a nossa amizade chegasse a este ponto. Eu, Inês, sempre fui aquela amiga que estava lá para tudo: as festas na faculdade, as noites de estudo, os desabafos sobre amores perdidos. E Marta… Marta era a alma da festa, a rapariga que todos invejavam pela beleza natural, pelo sorriso fácil e pela energia contagiante. Mas agora, à minha frente, estava uma sombra do que ela fora.
— Não percebes, Inês… — murmurou ela, tentando acalmar o Tomás com um embalo desajeitado. — Eu não tenho tempo para mim. Não tenho tempo para nada. — A voz dela soava rouca, quase apagada.
Senti um nó na garganta. Tantas vezes imaginei que seríamos mães ao mesmo tempo, que os nossos filhos cresceriam juntos. Mas eu ainda não tinha filhos, e Marta parecia ter desaparecido dentro do papel de mãe. O marido dela, o Rui, passava horas no trabalho e quando chegava a casa limitava-se a jantar em silêncio e a ver televisão. A sogra vinha de vez em quando, mas só para criticar: “O menino está muito magro”, “A casa está uma desgraça”, “Antigamente as mulheres davam conta do recado”.
Eu tentava ajudar. Levava comida feita, oferecia-me para passear o Tomás para ela tomar banho ou dormir uma sesta. Mas Marta recusava quase sempre.
— Não quero que vejas a minha casa assim… Não quero que penses mal de mim…
— Marta, somos amigas desde os cinco anos! Achas mesmo que me importo com a desarrumação? Importo-me contigo! — tentei argumentar.
Mas ela afastava-se cada vez mais. As mensagens ficaram por responder, os convites para sair foram recusados um a um. As nossas idas ao cinema, os jantares de sushi, até as caminhadas à beira-rio ao domingo… tudo ficou para trás.
Comecei a sentir-me rejeitada. No trabalho, os colegas falavam das suas vidas agitadas e eu sentia-me cada vez mais sozinha. A minha mãe dizia: “Dá-lhe tempo. A maternidade muda tudo.” Mas será que muda assim tanto? Será que apaga quem somos?
Um dia, decidi aparecer sem avisar. Levei flores e um bolo de chocolate caseiro. Toquei à campainha e ouvi passos arrastados do outro lado da porta.
— Inês? O que fazes aqui? — perguntou Marta, surpresa e visivelmente desconfortável.
— Vim ver-te. Senti saudades… — tentei sorrir.
Ela hesitou antes de me deixar entrar. A casa estava ainda mais caótica do que da última vez: brinquedos espalhados pelo chão, loiça acumulada na pia, roupa por dobrar em cima do sofá.
— Desculpa… — murmurou ela, envergonhada.
— Não peças desculpa. Senta-te comigo um bocadinho — pedi.
Sentámo-nos lado a lado no tapete da sala. O Tomás dormia finalmente. O silêncio era pesado.
— Sinto falta de ti — confessei.
Ela começou a chorar baixinho.
— Eu também sinto falta de mim…
Ficámos ali abraçadas durante minutos que pareceram horas. Pela primeira vez em meses, senti que a minha amiga ainda estava lá algures, perdida dentro daquela rotina sufocante.
Mas os dias seguintes trouxeram mais distância. Marta voltou a fechar-se no seu mundo. O Rui começou a chegar ainda mais tarde a casa; ouvi rumores de que andava a sair com colegas depois do trabalho. A sogra aumentou as críticas: “A Marta não sabe ser mãe”, “O Rui merece melhor”.
Tentei falar com ela sobre procurar ajuda profissional. Sugeri terapia, grupos de mães, até pedi à minha mãe para lhe ligar. Mas Marta recusava tudo.
— Não quero que pensem que sou fraca — dizia ela.
A nossa amizade tornou-se um campo minado de silêncios e ressentimentos. Eu sentia-me impotente; ela sentia-se julgada.
No Natal desse ano, organizei um jantar em minha casa e convidei-a com o Rui e o Tomás. Ela apareceu atrasada, com olheiras profundas e o cabelo apanhado num coque desalinhado. Mal tocou na comida. O Rui ficou ao telemóvel quase toda a noite.
Depois do jantar, fui ter com ela à varanda.
— Marta, tens de te cuidar… Não podes desaparecer assim…
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Eu já não sei quem sou sem o Tomás… Tenho medo de nunca mais voltar a ser eu própria…
Nesse momento percebi: não era só a amizade que estava em risco; era a própria identidade dela.
Os meses passaram. Marta acabou por aceitar ajuda profissional depois de uma crise em que quase desmaiou de exaustão. O Rui foi confrontado com as suas ausências e acabou por pedir desculpa — mas as feridas ficaram.
Hoje, olho para trás e vejo como é fácil julgar quem amamos quando não compreendemos o peso das suas batalhas diárias. A nossa amizade nunca voltou a ser igual; há silêncios que nunca se preenchem totalmente. Mas aprendi que às vezes amar alguém é aceitar perdê-lo por um tempo — ou talvez para sempre.
Será que alguma vez conseguimos realmente voltar a ser quem éramos antes das grandes mudanças da vida? Ou será que temos de aprender a amar as novas versões uns dos outros — mesmo quando nos magoam?