Nunca Entendi Porque a Minha Mãe Cozinhava Para o Meu Marido: Uma Noite Descobri a Verdade

— Porquê, mãe? Porquê é que insistes em cozinhar para o Miguel todas as noites? — perguntei, já sem conseguir conter o tom de voz, enquanto ela mexia distraidamente no tacho de arroz de pato.

Ela não respondeu de imediato. Limitou-se a olhar para mim, com aquele olhar cansado, como se eu fosse uma criança birrenta. O cheiro intenso do forno misturava-se com a raiva que me subia ao peito. Desde pequena que sentia que nunca seria suficiente para ela, mas agora parecia que nem para o meu próprio marido eu era suficiente.

O Miguel entrou na cozinha nesse momento, sorrindo, como se nada se passasse. — Cheira mesmo bem, dona Teresa! — disse ele, piscando-lhe o olho. A minha mãe sorriu-lhe de volta, um sorriso que eu já não via há anos. Senti-me invisível.

A verdade é que nunca gostei de cozinhar. Sempre sonhei com uma vida diferente, longe das panelas e dos tachos, longe das expectativas sufocantes da minha mãe. Queria viajar, conhecer o mundo, ser livre. Mas a vida empurrou-me para um casamento cedo demais, e acabei por voltar à casa onde cresci, agora partilhada com o homem que escolhi e a mãe que nunca me deixou escolher.

Os jantares tornaram-se um ritual estranho: eu sentada à mesa, calada, enquanto a minha mãe e o Miguel trocavam piadas e histórias. Ele elogiava cada prato, ela corava de orgulho. Eu sentia-me cada vez mais pequena.

Uma noite, depois de mais um jantar em que fui apenas espectadora, decidi sair para apanhar ar. Sentei-me no banco do jardim e chorei baixinho. Oiço passos atrás de mim — era o Miguel.

— Estás bem? — perguntou ele, pousando a mão no meu ombro.

Afastei-me. — Não percebes? Não vês como ela te trata? Como se fosses… como se fosses o filho que ela sempre quis ter?

Ele suspirou. — Ela só quer ajudar. Sabe que tens andado cansada…

— Não é isso! — gritei. — Ela nunca me deixou ser eu própria! E agora parece que nem tu és meu!

Ele ficou em silêncio. Voltámos para dentro sem trocar mais palavras.

Os dias seguintes foram iguais: a minha mãe cozinhava, o Miguel elogiava, eu calava-me. Até que uma noite tudo mudou.

Cheguei mais cedo do trabalho porque uma reunião foi cancelada. Entrei em casa sem fazer barulho e ouvi vozes na cozinha.

— Não podes continuar assim, Teresa — dizia o Miguel num tom baixo, quase suplicante.

— Eu só quero o melhor para vocês — respondeu a minha mãe, a voz embargada.

— Mas não é justo para a Ana. Ela sente-se posta de parte.

— Ela nunca quis esta vida! Sempre fugiu de tudo o que era nosso… — a voz dela tremia. — Eu só queria que ela fosse feliz aqui.

— Mas não é assim que se faz… — disse ele suavemente.

Fiquei parada no corredor, sem coragem de entrar. Ouvia os pratos a serem arrumados, os talheres a tilintar. Senti uma raiva surda misturada com pena.

De repente ouvi um soluço. Era a minha mãe.

— Eu perdi o teu pai por causa disto… — confessou ela entre lágrimas. — Ele também queria fugir. E eu fiquei sozinha nesta casa enorme, com uma filha que mal me olhava nos olhos. Quando tu chegaste… pensei que podia fazer diferente. Que podia dar à Ana aquilo que nunca consegui dar ao pai dela: um lar feliz.

O Miguel aproximou-se dela e abraçou-a. Senti-me traída e ao mesmo tempo miserável por nunca ter percebido o vazio dela.

Entrei na cozinha devagar. Eles separaram-se rapidamente, limpando as lágrimas às pressas.

— Desculpem interromper — disse eu, sem saber onde pôr as mãos.

A minha mãe olhou para mim como se me visse pela primeira vez em anos. — Ana… eu só queria ajudar.

Sentei-me à mesa e respirei fundo. — Eu sei, mãe. Mas eu preciso de espaço para ser quem sou. Preciso de errar, de aprender… Preciso que confies em mim.

Ela assentiu devagar, os olhos vermelhos.

O Miguel pegou na minha mão por baixo da mesa. Pela primeira vez em muito tempo senti-me vista.

Nessa noite não houve jantar especial nem elogios forçados. Sentámo-nos os três à mesa com uma sopa simples e um silêncio pesado mas honesto.

Os dias seguintes foram estranhos, como se todos tivéssemos medo de dizer a coisa errada. A minha mãe começou a sair mais vezes com as amigas do bairro; eu e o Miguel tentámos redescobrir-nos sem a sombra dela entre nós.

Uma tarde encontrei-a no jardim, a regar as flores do meu pai.

— Sabes — disse ela sem me olhar — às vezes penso que falhei contigo.

Sentei-me ao lado dela. — Não falhaste, mãe. Só precisamos de aprender a ser família de outra maneira.

Ela sorriu tristemente e apertou-me a mão.

Hoje olho para trás e vejo como as nossas dores se entrelaçaram sem darmos conta. Cresci a fugir do passado dela e ela tentou proteger-me dos mesmos erros, mas acabámos presas num ciclo de mágoa e silêncio.

Pergunto-me: quantas famílias vivem assim, presas entre aquilo que foi e aquilo que sonham ser? Será possível quebrar este ciclo antes que seja tarde demais?