Os Caminhos Não Percorridos: Entre o Peso das Escolhas e o Silêncio da Saudade
— Por que é que nunca me disseste nada, pai? — A voz da minha filha, Inês, ecoa pela cozinha fria, atravessando o cheiro a café requentado e pão torrado. O relógio da parede marca seis da manhã, mas o tempo parece ter parado há décadas, desde aquele dia em que decidi ficar em Vila Nova de Poiares, ao invés de seguir para Lisboa com o António.
Olho para ela, os olhos castanhos tão parecidos com os meus, mas cheios de uma raiva que nunca soube como acalmar. O silêncio pesa entre nós. Oiço ao longe o galo do vizinho, como se me lembrasse que o mundo continua, mesmo quando a nossa vida parece suspensa.
— O que é que querias que eu dissesse, filha? Que tive medo? Que preferi ficar aqui porque não sabia viver sem a tua avó a controlar cada passo meu? — A minha voz sai rouca, quase um sussurro. — Que nunca tive coragem de ser mais do que aquilo que esperavam de mim?
Ela baixa os olhos, mas não desiste.
— Sempre disseste que a vida era feita de escolhas. Mas nunca escolheste nada por ti. Nem sequer foste ver o mar até aos quarenta anos! — O tom dela é acusador, mas também há tristeza ali. Uma tristeza que reconheço porque é igual à minha.
A verdade é essa: nunca fui ver o mar até aos quarenta anos. Cresci a ouvir histórias do meu tio Joaquim sobre Lisboa, sobre as luzes da cidade e as promessas de uma vida diferente. Mas a minha mãe precisava de mim para cuidar da terra, para manter a casa em ordem depois que o meu pai se fechou no silêncio dele, depois da morte do meu irmão mais novo.
Lembro-me do António, o meu melhor amigo desde a escola primária. Ele sonhava alto, queria ser jornalista e viajar pelo mundo. Uma noite, sentados no muro da escola, ele disse-me:
— Ó Miguel, vamos embora daqui. Lisboa espera por nós. Não podemos passar a vida a olhar para as mesmas oliveiras.
Eu quis ir. Juro que quis. Mas quando cheguei a casa e vi a minha mãe sentada à mesa, as mãos calejadas agarradas à chávena de chá, percebi que não podia deixá-la sozinha. O meu pai já não falava com ninguém desde que o Tiago morreu. Era como se a dor tivesse engolido tudo.
Fiquei. Vi o António partir no comboio das seis da manhã. Nunca mais voltou.
Casei com a Ana pouco tempo depois. Ela era doce, paciente, mas também cheia de sonhos pequenos: uma casa arrumada, filhos bem-educados, domingos na missa. Tivemos dois filhos: a Inês e o Pedro. Dei-lhes tudo o que podia — ou pelo menos pensei que sim.
Mas agora vejo que lhes dei apenas aquilo que conhecia: medo de arriscar, respeito pelas rotinas, amor silencioso e pouco demonstrado.
O Pedro foi o primeiro a sair. Aos vinte anos fez as malas e foi estudar para o Porto. Nunca olhou para trás. Telefona-me no Natal e nos aniversários, mas sinto sempre uma distância nos telefonemas dele, como se falássemos línguas diferentes.
A Inês ficou mais tempo. Casou cedo com o Rui e teve dois filhos lindos. Mas há sempre uma inquietação nela, um desejo de mais qualquer coisa. Vejo-a olhar para os mapas na parede da sala dela e percebo: ela herdou os meus sonhos não realizados.
— Pai — diz ela agora — eu só queria saber se alguma vez foste feliz aqui.
Fico calado. Como responder? Houve momentos felizes: os risos dos meus filhos no quintal, as noites à lareira com a Ana antes dela adoecer, os almoços de domingo com toda a família reunida. Mas também houve muitos dias cinzentos, em que olhava pela janela e imaginava como seria atravessar fronteiras, ouvir outras línguas, sentir outros cheiros.
Quando a Ana morreu — já lá vão dez anos — senti-me completamente perdido. Os filhos já tinham saído de casa e eu fiquei sozinho com os meus fantasmas. Foi nessa altura que comecei a escrever cartas ao António, cartas que nunca enviei.
“António,
Hoje sonhei contigo outra vez. Estávamos na estação de comboios e tu dizias-me para não ter medo. Eu queria tanto ir contigo… Mas fiquei. Sempre fiquei. Será que ainda te lembras de mim? Será que fizeste tudo aquilo com que sonhavas?”
Guardei essas cartas numa caixa de sapatos no fundo do armário. Às vezes penso em queimá-las, mas não consigo.
A Inês levanta-se da mesa e começa a arrumar as chávenas com força demais.
— Não quero acabar como tu — diz ela baixinho. — Não quero acordar um dia e perceber que deixei tudo por fazer.
Sinto um aperto no peito. Queria dizer-lhe que ainda vai a tempo, que nunca é tarde demais para mudar de vida. Mas será verdade? Eu próprio já não acredito nisso.
O telefone toca. É o Pedro. Atendo com mãos trémulas.
— Olá pai.
— Olá filho. Está tudo bem?
— Está… Mais ou menos. Preciso falar contigo sobre a avó Maria. Ela está pior…
A avó Maria é a mãe da Ana. Vive sozinha numa aldeia ainda mais pequena do que a nossa. O Pedro sente-se responsável por ela porque eu nunca fui capaz de criar laços fortes depois da morte da Ana.
— Queres que eu vá lá? — pergunto.
— Não sei… Talvez fosse bom para ti também sair um pouco daí.
Desligo o telefone com um nó na garganta. Sair daqui? Agora? Aos setenta anos?
A Inês olha para mim com olhos vermelhos.
— Vai lá pai. Faz alguma coisa diferente por uma vez na vida.
Fico sentado à mesa muito tempo depois dela sair. O sol começa a nascer por detrás das oliveiras e penso em todos os caminhos não percorridos: Lisboa com o António; Paris com a Ana (ela sonhava ver a Torre Eiffel); até mesmo uma simples ida ao Porto visitar o Pedro mais vezes.
A vida passou por mim como um comboio rápido demais para eu apanhar.
Levanto-me devagar e vou buscar as cartas ao armário. Leio uma ao acaso:
“António,
Hoje vi uma reportagem sobre Veneza na televisão. Lembrei-me das tuas histórias sobre canais e gôndolas. Nunca fui lá… Nem sequer saí deste distrito.”
Sorrio tristemente.
Pego nas chaves do carro e decido ir ver a avó Maria. Talvez seja pouco, mas é um começo.
No caminho penso em tudo aquilo que perdi: viagens, amigos, momentos com os meus filhos em que podia ter sido mais presente, menos rígido, mais sonhador.
Quando chego à casa dela, vejo-a sentada à janela, olhando para longe como se esperasse alguém há muito desaparecido.
Sento-me ao lado dela em silêncio.
— Miguel — diz ela — achas que ainda vamos a tempo de ser felizes?
Não sei responder-lhe. Talvez ninguém saiba.
Agora escrevo estas palavras para quem quiser ouvir:
Será que todos temos direito a uma segunda oportunidade? Ou será que passamos a vida inteira à espera do momento certo até percebermos que ele nunca chega?
E vocês? Que caminhos deixaram por percorrer?