Quando o Meu Marido Escolheu a Mãe: O Meu Caminho Entre o Amor e a Solidão

— Mariana, não percebes que a minha mãe precisa de mim? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, dura e fria, enquanto eu segurava uma chávena de chá já morna nas mãos trémulas.

Olhei para ele, tentando encontrar nos olhos castanhos aquele rapaz doce por quem me apaixonei há dez anos, mas só vi cansaço e uma espécie de raiva surda. A minha sogra, Dona Lurdes, estava sentada à mesa, com um ar de mártir, os olhos semicerrados e um lenço branco apertado nas mãos.

— Precisa de ti? Rui, ela está ótima! Só não quer ficar sozinha — arrisquei, sabendo que cada palavra era como acender um fósforo num barril de pólvora.

Dona Lurdes suspirou alto. — Mariana, tu não sabes o que é perder tudo na vida. O meu Rui é o meu único apoio. — E olhou para ele como se eu fosse uma intrusa na própria casa.

A verdade é que nunca fui bem-vinda ali. Desde o início do nosso namoro, Dona Lurdes fazia questão de me lembrar que eu era apenas “aquela rapariga de Lisboa” que queria afastar o filho dela. E Rui… Rui nunca soube dizer-lhe não.

Os primeiros anos foram suportáveis. Eu achava que com o tempo ela se habituaria à minha presença. Mas depois do casamento, tudo piorou. Dona Lurdes ligava-lhe todos os dias — às vezes de madrugada — a pedir ajuda para mudar uma lâmpada, abrir um frasco ou simplesmente porque “se sentia sozinha”. Rui largava tudo: jantares, fins de semana, até as férias que planeávamos juntos.

Lembro-me de um Natal em particular. Tínhamos combinado passar a noite em casa dos meus pais, mas Dona Lurdes telefonou a chorar: “Rui, estou tão mal… Não aguento esta solidão.” Ele olhou para mim, hesitante, mas já sabia a resposta antes de abrir a boca.

— Desculpa, Mariana. Ela precisa de mim.

Fui sozinha para casa dos meus pais nesse Natal. A minha mãe tentou animar-me com rabanadas e histórias antigas, mas eu só conseguia pensar no vazio do lado direito da mesa.

Com o tempo, comecei a sentir-me invisível. As nossas conversas resumiam-se à rotina: contas para pagar, compras do supermercado, quem ia buscar o carro à oficina. O Rui estava sempre cansado, sempre preocupado com a mãe. E eu? Eu era apenas um detalhe na vida dele.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre Dona Lurdes, fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. Olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo despenteado, olhos vermelhos. Onde estava aquela Mariana cheia de sonhos? Onde estava o amor?

Tentei falar com ele. — Rui, precisamos de ajuda. Isto não é normal. Não podemos continuar assim.

Ele encolheu os ombros. — Mariana, tu sabias como era a minha mãe antes de casarmos. Eu não posso deixá-la sozinha.

— E eu? Vais deixar-me sozinha?

Ele não respondeu.

Comecei a sair mais com as minhas amigas. A Ana dizia-me sempre: “Mariana, tu mereces mais!” Mas eu sentia-me presa numa teia de culpa e obrigação. Afinal, Dona Lurdes era viúva e Rui era filho único. Quem era eu para exigir prioridade?

Mas a situação tornou-se insuportável quando descobri que estava grávida. Quis partilhar a notícia com Rui num jantar especial — mas ele cancelou à última hora porque a mãe tinha tido uma “crise de ansiedade”.

Quando finalmente lhe contei, ele sorriu, abraçou-me… e depois ligou à mãe para lhe dar a notícia em primeira mão. Senti-me traída e pequena.

Durante a gravidez, Dona Lurdes tornou-se ainda mais presente. Dava palpites sobre tudo: o nome do bebé, as roupas, até o hospital onde devia nascer. Rui concordava com tudo o que ela dizia.

No dia em que a nossa filha nasceu — Matilde — Dona Lurdes foi a primeira a pegá-la ao colo. Eu estava exausta, mas ela entrou no quarto do hospital como se fosse dona do espaço e disse: “A avó está aqui, meu amor!”

Os meses seguintes foram um caos. Dona Lurdes aparecia em nossa casa sem avisar, criticava tudo o que eu fazia com a Matilde e dizia ao Rui que eu era “inexperiente” e “fria”.

Uma tarde, depois de mais uma discussão acesa na sala — desta vez porque eu não queria dar papas à Matilde antes dos seis meses — Dona Lurdes levantou-se e disse:

— Se fosse comigo, esta menina já estava criada! Tu não sabes ser mãe!

O Rui ficou calado. Não me defendeu. Senti uma raiva tão grande que tive vontade de gritar.

Nessa noite, escrevi uma carta ao Rui. Disse-lhe tudo: como me sentia sozinha, como precisava dele ao meu lado, como não aguentava mais ser sempre a segunda escolha.

Ele leu a carta em silêncio. Depois disse apenas:

— Mariana… Eu amo-te. Mas não posso abandonar a minha mãe.

Foi nesse momento que percebi: ou ficava ali a definhar lentamente ou tinha de escolher-me a mim própria.

Arrumei algumas roupas minhas e da Matilde e fui para casa dos meus pais. A minha mãe abraçou-me forte e disse: “Filha, às vezes amar também é saber partir.” Chorei tudo o que tinha para chorar nessa noite.

Os dias seguintes foram difíceis. O Rui ligava-me todos os dias, ora zangado ora arrependido. Dona Lurdes mandava mensagens passivo-agressivas: “Espero que estejas feliz por teres destruído esta família.” Senti culpa, medo… mas também um estranho alívio.

Comecei terapia. Aprendi a olhar para mim sem vergonha ou culpa. Aos poucos recuperei forças para voltar ao trabalho e cuidar da Matilde sozinha.

O Rui tentou convencer-me a voltar várias vezes. Prometeu mudanças mas nunca conseguiu impor limites à mãe.

Hoje vivo num pequeno apartamento com a Matilde. Não foi fácil reconstruir-me — ainda há dias em que me sinto só ou insegura — mas aprendi que mereço ser amada sem reservas nem condições.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem presas nesta teia de obrigações familiares? Quantas sacrificam os seus sonhos por medo ou culpa? Será que algum dia vamos aprender a escolher-nos primeiro?