O Sogro que Devorou os Meus Sonhos: A Luta pelo Meu Próprio Lar
— Outra vez, António? Vais mesmo trazer o teu pai para jantar sem me dizer nada? — perguntei, tentando controlar a voz, mas sentindo o nó apertado na garganta.
António desviou o olhar, envergonhado. — Ele não tem ninguém, Maria. E sabes como ele fica sozinho desde que a mãe morreu…
Suspirei fundo, sentindo o cheiro do arroz de pato que preparava a transformar-se em algo amargo. O relógio da cozinha marcava sete e meia. Ouvia já os passos pesados do senhor Manuel a subir as escadas do nosso prédio antigo em Almada, cada degrau um anúncio de mais uma noite sufocante.
Quando ele entrou, nem um “boa noite”. Foi direto ao frigorífico, abriu a porta e ficou ali, parado, como se procurasse algo que nunca iria encontrar. Pegou numa cerveja, sentou-se à mesa e ligou a televisão. O som alto abafava qualquer tentativa de conversa.
— Maria, tens queijo? — perguntou sem olhar para mim.
— Não temos queijo hoje, senhor Manuel — respondi, tentando sorrir.
Ele resmungou algo sobre como antigamente as mulheres sabiam receber um homem em casa. Senti António encolher-se na cadeira. O jantar foi servido em silêncio, apenas interrompido pelo barulho dos talheres e pelos comentários do sogro sobre política e futebol.
Naquela noite, depois de ele sair, rebentei:
— Isto não pode continuar! Ele vem todos os dias, António! Todos! Eu não tenho paz na minha própria casa!
António passou as mãos pelo rosto. — Ele é meu pai…
— E eu sou tua mulher! — gritei. — E esta é a nossa casa! Não aguento mais sentir-me uma estranha aqui!
Ele não respondeu. Virou-se para o lado na cama e fingiu dormir. Eu chorei baixinho até adormecer.
Os dias passaram iguais: o senhor Manuel chegava sempre à hora do jantar, comia tudo o que havia no frigorífico, criticava a minha comida, reclamava do barulho das crianças dos vizinhos e deixava sempre um rasto de migalhas pela casa. Comecei a evitar convidar amigas para lanchar. Sentia vergonha da minha própria vida.
Uma tarde, ao chegar do trabalho, encontrei-o sentado no sofá com os pés em cima da mesa de centro. Tinha aberto uma garrafa de vinho que guardava para um jantar especial com António. O vinho escorria pelo tapete novo.
— Senhor Manuel! Esse vinho era para uma ocasião especial! — disse, tentando manter a calma.
Ele olhou-me com desdém. — Ocasião especial? A vida é para ser vivida, menina. Não fiques aí feita madame.
Senti o sangue ferver. Liguei para António no trabalho:
— Ou resolves isto ou eu vou embora!
Ele chegou a casa mais cedo nesse dia. Os dois discutiram alto na sala enquanto eu me trancava no quarto, abraçada à almofada para abafar os gritos.
No dia seguinte, António estava diferente. Calado, distante. O senhor Manuel não apareceu para jantar. Senti um alívio misturado com culpa.
Mas foi só uma trégua. Dois dias depois, ele voltou — desta vez com uma mala.
— O que é isso? — perguntei, gelada.
— O meu senhorio aumentou a renda. Vou ficar aqui uns tempos — anunciou, já entrando no quarto de hóspedes.
Olhei para António em choque. Ele não conseguia encarar-me.
As semanas seguintes foram um inferno. O senhor Manuel implicava com tudo: com o meu horário de trabalho, com a forma como arrumava a casa, até com as minhas roupas.
— Antigamente as mulheres sabiam cuidar dos maridos — dizia alto, para eu ouvir.
Comecei a chegar mais tarde do trabalho só para evitar estar em casa. António tentava apaziguar as coisas, mas era como se tivesse desaparecido dentro dele próprio.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o jantar — “O bacalhau está salgado demais!” — perdi o controlo:
— Chega! Esta casa é minha também! Não vou viver assim!
O senhor Manuel levantou-se da mesa e atirou o prato ao chão.
— Se não sabes ser mulher nesta casa, então vai-te embora!
António ficou parado, sem dizer nada.
Arrumei algumas roupas numa mala e saí. Fui dormir na casa da minha irmã em Setúbal. Chorei toda a noite.
No dia seguinte, António ligou-me dezenas de vezes. Não atendi. Só à noite aceitei falar com ele.
— Maria… volta para casa. Eu preciso de ti…
— E eu? Quem precisa de mim? Quem me protege nesta casa?
Silêncio do outro lado.
— Eu amo-te… mas não posso escolher entre ti e o meu pai…
— Então talvez já tenhas escolhido…
Passei uma semana fora de casa. No trabalho perguntavam-me se estava doente; emagreci três quilos em poucos dias.
A minha irmã tentou animar-me:
— Tens de lutar pelo que é teu! Não deixes que te roubem a tua vida!
Na sexta-feira à noite fui buscar algumas coisas ao apartamento. O senhor Manuel não estava; António esperava-me sentado à mesa da cozinha.
— Maria… eu falei com ele. Vai procurar outro sítio para ficar. Não quero perder-te…
Sentei-me à frente dele. Os olhos dele estavam vermelhos.
— Porque demoraste tanto?
Ele baixou a cabeça.
— Porque sempre me ensinaram que família é tudo… Mas tu também és família agora.
Chorámos juntos naquela noite. O senhor Manuel saiu dois dias depois, mas deixou atrás de si um silêncio pesado e um casamento cheio de feridas.
Durante meses tentei reconstruir o nosso lar: mudei os móveis de sítio, pintei as paredes da sala de amarelo claro, plantei manjericão na varanda. Mas havia sempre um medo: e se tudo voltasse ao mesmo?
António esforçava-se por ser melhor marido; ajudava mais em casa, ouvia-me com atenção. Mas às vezes apanhava-o ao telefone com o pai às escondidas e sentia uma pontada de ciúme misturada com culpa.
No Natal desse ano convidámos o senhor Manuel para jantar connosco. Trouxe um bolo-rei comprado no supermercado e ficou calado quase toda a noite. Antes de sair disse apenas:
— Cuida bem do meu filho…
Fiquei ali parada na porta depois dele sair, sentindo que nunca seria suficiente para aquele homem — mas talvez já não precisasse ser.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas entre o dever e o amor-próprio? Até onde devemos ir por respeito à família? E quando é tempo de dizer basta?